“Esse fantasma que chega e me abraça (asas cobrindo a ferida do flanco) é todo o amor que resta” (Lya Luft)
De forma solitária, e quase melancólica, ele se senta no topo da colina e mira o horizonte. Já não lembra quantas vezes sobrevoou vales, ravinas, rios e mesmo um pedaço do mar próximo. Mas o mar o amedronta. Teria forças para cruzá-lo na sua imensidão? Não se recorda também desde quando voa sozinho sem ter com quem dividir as paisagens ou tecer comentários sobre as mudanças próprias de cada estação. Quantas estações teriam passado? Mas a melancolia não decorre dos voos e sim da certeza que permanecerá só. A cada pessoa que desacreditava um dos seus desaparecia. Ele é o único. Mas sabe que existe e precisa cumprir seu papel. Resta a beleza da natureza. O vento boreal é forte, e faz tremular suas asas. São asas enormes que lhe servem ao voo, mas ainda como abrigo contra o frio. As penas longas e sedosas parecem felizes com o vento que as perpassa. Elas se movimentam como se fossem as saias de uma melindrosa. Alojadas simetricamente, elas dão corpo e imponência às suas asas. Não lhe são as pernas o principal instrumento de movimentação ou deslocamento, mas sim suas asas. Asas que o acompanham noite e dia. Aliás, ele aproveita a noite para buscar os frutos de que se alimenta e contemplar as pessoas. Uma contemplação protetora, um olhar cheio de empatia, … Mas, mesmo assim, se mantem sempre escondido nas nuvens ou na escuridão. Não basta a descrença de muitos quanto à sua existência, mas resta o risco de ser diferente em um mundo que fere, destrói e mutila quem é diverso. Não interessa se a criatura é boa, sincera, empática, …, ela precisa ser maltratada se for diferente. Aprendeu isso vendo os comportamentos de uns para com outros – homens de pouco amor. Também sua existência é incerta. Sendo o último, não sabe quando estará extinto, mas sabe que sobreviverá enquanto alguém acreditar na sua existência. Se fortalece a cada prece de criança, a cada oração de adulto. Já é tarde! O sol se põe. Tempo de mais um voo à luz do astro rei abóbora, que será substituído logo por uma lua prateada. Lá embaixo, o rio calmo corta o vale, enquanto as montanhas se banham de luz nesse final de dia. Será discreto no seu passeio vespertino. Mas, talvez, uma ou duas pessoas o verão, esfregarão os olhos e dirão: “Miragem. Pois anjos não existem!”. E esse ser alado continuará seu voo tranquilo, com alguns “loopings” a título de aventura, enquanto zela por tantas pessoas, uma honra, que sequer fazem por merecer.