RIO DE BELEZA, AMORES E DORES
“Doce e calorosa, a minha história escorre aqui.” (Aldir Blanc)
No dia 1° de março minha cidade, tão cantada em versos e prosas, completa 456 anos… Rio de Janeiro, dona de uma geografia invejável, é cercada de mar azul caudaloso e de um verde atlântico de tirar o fôlego, isso tudo sem mencionar sua rica fauna. “Rio que mora no mar, sorrio pro meu Rio que tem no seu mar lindas flores, que nascem morenas em jardins de sol” (Menescal/Bôscoli). É que “Do Leme ao Pontal não há nada igual” (Tim Maia). É realmente uma “cidade maravilhosa, cheia de encantos mil!” (André Filho/Aurora Miranda). Lembro de, ao retornar de viagem ao Exterior, ter um sentimento de pertencimento inigualável ao sobrevoá-la. Era meu lugar! Minha terra! Meu chão! A descrição dessa emoção não poderia ser outra senão “Minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro. Estou morrendo de saudade. Rio, mar, praia sem fim, Rio você foi feito pra mim.” (Tom Jobim). Nada se compara, na volta, ver o “Cristo Redentor, braços abertos sobre a Guanabara.” (Tom Jobim). E concluí que: “Só fico à vontade na minha cidade, volto sempre a ela feito criminosa. Doce e calorosa, a minha história escorre aqui.” (Aldir Blanc) Falar do Rio de Janeiro é mergulhar na nostalgia de uma cena de Rio Antigo: “Eu pego o bonde 12 de Ipanema, pra ver o Oscarito e o Grande Otelo no cinema, domingo no Rian…Quero o programa de calouros com Ary Barroso, o Lamartine me ensinando um lá, lá, lá, lá, lá gostoso…Um velho samba do Ataulfo que ninguém jamais gravou.” (Chico Anísio/ Nonato Buzar) E como não lembrar de Noel Rosa nas disputas intermináveis entre sambistas? “Quem é você que não sabe o que diz? Meu Deus do céu, que palpite infeliz! Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz, que sempre souberam muito bem, que a Vila não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz samba também.” É também a época de ouro dos anos 50 e 60, com a Bossa Nova estourando no mundo todo, trazendo um ar romântico, charmoso e refinado, e ensinando como se reconhece uma legítima carioca: “…, ela é carioca, basta o jeitinho dela andar. Nem ninguém tem carinho assim para dar.” (Tom Jobim/Vinícius) A beleza, em todos os seus aspectos, era cantada tanto na “Moça do corpo dourado do sol de Ipanema, o seu balançado é mais que poema, é a coisa mais linda que eu já vi passar”, como também nas suas paisagens num “Céu tão azul, ilhas do Sul, e o barquinho é um coração, deslizando na canção.” (Menescal/Bôscoli) Mas essa riqueza toda não se resumia à zona sul, havendo, ainda, o Rio do centro, dos subúrbios e dos morros, berços do samba e da cultura de massa, dentre outras coisas. Ouro puro! Dali saíam figuras maravilhosas como Cartola, Ismael Silva, Mário Lago e tantos outros. O Rio encantado e cantado, orgulhosamente, por Zé Keti: “Eu sou o samba, a voz do morro sou eu mesmo, sim senhor, quero mostrar ao mundo que tenho valor, eu sou o rei dos terreiros. Eu sou o samba, sou natural aqui do Rio de Janeiro, sou eu quem levo a alegria para milhões de corações brasileiros.” Aquela vida simples, pacata (muitas vezes dura!) do subúrbio deixou muita saudade, como nos versos “Quero um bate-papo na esquina, eu quero o Rio antigo com crianças na calçada, brincando sem perigo, sem metrô e sem frescão, o ontem no amanhã.” (Chico Anísio/Nonato Buzar) Com o crescimento desordenado da cidade, da violência e da pobreza, tendo como pano de fundo a malfadada corrupção que há tempos corrói a sociedade carioca, aquele Rio dourado começou a desmoronar, o que não passou despercebido pelo olhar acurado do nosso “poeta, poetinha” na carta escrita ao Tom, em que lamenta: “Mesmo a tristeza da gente era mais bela, e além disso se via da janela um cantinho de céu, o Redentor.” Chico Buarque, parodiando a canção, sentenciou: “Minha janela não passa de um quadrado, a gente só vê Sérgio Dourado, onde antes se via o Redentor”. Para aqueles que não sabem, a empresa Sérgio Dourado foi um império que dominou a cena imobiliária carioca por anos e anos. Então todo aquele glamour de outrora se foi, a “Copacabana, princesinha do mar” de Braguinha e Alberto Ribeiro já não é mais a mesma, e restou um triste ar decadente cantado nos versos de Aldir: “E Copacabana, a linda meretriz-princesa, Loura mãe de Santo, com sua gargantilha acesa… Ela me ensinou pureza e pecado, a respiração do mar revoltado, Rio de Janeiro, favelas no coração.” (Aldir Blanc/Moacyr Luz) Afirmar que, nos dias de hoje, “O Rio de Janeiro continua lindo, o Rio de Janeiro continua sendo” (Gilberto Gil) não seria de todo verdadeiro… Aquela cidade que tinha um “Menino do Rio, calor que provoca arrepio, dragão tatuado no braço, calção corpo aberto no espaço” (Caetano Veloso) não existe mais. Pelo menos não em sua totalidade. Hoje, vemos um Rio de desigualdades sociais abissais, onde a palavra “meritocracia” não faz qualquer sentido para muita gente. Na verdade, é um “Rio, cidade-desespero. (…) Olho aberto, malandragem não tem dó do Rio de Janeiro, cidade hardcore. Arrastão na praia não tem problema algum. Chacina de menores é aqui, 021. Polícia, cocaína, Comando Vermelho. Sarajevo é brincadeira, aqui é o Rio de Janeiro.” (Planet Hemp) Daí ser inevitável uma certa melancolia com relação ao que não é mais, inclusive quanto ao aspecto ecológico: “Chorei com saudades da Guanabara, refulgindo de estrelas claras, longe dessa devastação. (…) Eu sei que a cidade hoje está mudada, Santa Cruz, Zona Sul, Baixada, vala negra no coração. Chorei com saudades da Guanabara, da Lagoa de águas claras, fui tomado de compaixão.” (Aldir/Moacyr Luz/ PC Pinheiro). Talvez quem viva o caos e a decadência da cidade grande em que se tornou nosso Rio não consiga, já cansado, parar, olhar, ouvir e sentir suas belezas e encantos. É verdade…A vida não sorri para todos igualmente, e às vezes é preciso um certo distanciamento para tentar se reerguer: “Deixe-me ir, preciso andar. Vou por aí a procurar, rir pra não chorar…” (Cartola) Mas, a despeito de toda essa triste realidade, o Rio permanece lutando bravamente para sobreviver, com sua gente corajosa que, diariamente, “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima.” (Paulo Vanzolini) É que o Rio é feito de gente que não desiste de sonhar. “O meu lugar é cercado de luta e suor, esperança num mundo melhor, e cerveja pra comemorar.” (Arlindo Cruz/Mauro Diniz) É a habilidade da transcendência que o carioca possui para manter-se firme, para ter um olhar que vai além, e se agarrar à esperança como a linha tênue que o faz prosseguir. É a capacidade, ainda, de se reinventar, de extravasar de alegria na maior festa pagã (mas não só!), como a exorcizar todos os demônios que insistem em bater à sua porta. “E o nosso Rio não é só março e fevereiro. Tem pagode o ano inteiro. Alô, bloco do pagodão! Alô, Cacique de Ramos! Galera do Terreirão!” (Pensador/ Martinho da Vila) Imbuído desse espírito, o carioca que ama o Rio acredita que, ainda que todo esse sofrimento persista, a gente pode tentar olhar por um outro ângulo, acreditando que tudo pode se renovar. “A nave quando desceu, desceu no morro, cheia de ET vestido de Orixá. Vieram pedir socorro, e se derem vez ao morro, todo o Universo vai sambar.” (Lenine/Bráulio Tavares) É o mesmo carioca que roga, com fé e esperança: “Brasil, tira as flechas do peito do meu Padroeiro, que São Sebastião do Rio de Janeiro ainda pode se salvar.” (Aldir/moacyr Luz/P.C. Pinheiro) Pode sim! Porque meu Rio “É Sol, é sal, é sul. São mãos se descobrindo em tanto azul. Por isso é que meu Rio da mulher beleza acaba, num instante, com qualquer tristeza, meu Rio que não dorme por que não se cansa. Meu Rio que balança, sorrio, sorrio, sorrio…É o meu Rio, meu Rio…(Menescal/Bôscoli), com toda a sua beleza, amores e dores.
Autora: Adriana Abud
Compositores citados: Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Tim Maia, André Filho, Aurora Miranda, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Toquinho, Aldir Blanc, Moacyr Luz, Paulo César Pinheiro, Chico Anísio, Nonato Buzar, Cartola, Zé Keti, Planet Hemp, Paulo Vanzolini, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Braguinha, Alberto Ribeiro, Arlindo Cruz, Mauro Diniz, Martinho da Vila, Gabriel, o Pensador, Lenine e Bráulio Tavares.
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