ESTUPRO SEM INTENÇÃO, JÁ PODE?

“Se o homem falhar em conciliar a justiça e a liberdade, então falha em tudo.” (Albert Camus)
Não há sociedade perfeita. Toda sociedade, como demonstra a história da evolução humana, sempre foi composta por uma parte de párias, criminosos, vis, desumanos, … uma certa escória. Leandro Karnal cita isso ao dizer: “Todos os países possuem corruptos e não existe uma sociedade formada apenas de anjos impolutos.”. O grande problema ocorre quando um membro dessa escória ganha destaque ou é enaltecido como líder. Há uma perfeita dramatização disso na obra de José Saramago – “Ensaio sobre a cegueira”, transformado em filme por Fernando Meirelles, com o personagem Rei de Ward 3 (interpretado por Gael García Bernal). Aliás, podemos citar o exemplo de Adolf Hitler, que, no modelo de maldade que representava (sadismo, preconceito, desumanidade, …) permitiu que o pior de uma sociedade viesse à tona, gerando o quase extermínio de judeus, além de uma onda de mortes talvez sem precedentes pela Europa. Hitler era um monstro, um anticristo, … mas não estava só. Não dá para fazer o que Karnal chama de “culto da corrupção isolada”. Hitler tinha seguidores tão culpados quanto ele, por ação e omissão. O exemplo é o principal formador de personalidades e hábitos. Nas nações (agrupamentos políticos autônomos que ocupam território com limites definidos e cujos membros respeitam instituições compartidas), os vínculos dos nacionais costumam estar associados a personagens comuns – suas figuras ou heróis nacionais. Da mesma forma, se o alcoolismo não é hereditário, grande parte de filhos de alcoólatras também desenvolvem a doença por força do exemplo comportamental que os acompanha desde tenra idade. Isso talvez explique algumas aberrações que temos visto, nos atuais dias, pelas terras tupiniquins. E falaremos aqui de misoginia (ódio ou aversão às mulheres). Não tanto no sentido sexual, mas no da desvalorização e inferiorização da mulher. Infelizmente, a mulher, desde Eva, sofre um certo estereótipo do ser falho. Mas, a má interpretação da Bíblia neste sentido traz, ainda no Gênesis, a história da mulher de Lot (cujo nome sequer é citado, mas só sua condição de esposa) transformada em estátua de sal pois olhara para trás, enquanto Deus destruía Sodoma e Gomorra. Isso permitiu um outro esteriótipo sobre a mulher, como sendo a figura da fofoqueira, enxerida, … Vale aqui lembrar o poema de Wislawa Szymborska, onde apresenta diversas justificativas e razões que poderiam ter feito a mulher de Lot ter tido tal conduta sem estar sendo enxerida ou coisa assim. E poderíamos, também, seguir aqui citando outras personagens bíblicas femininas como Dalila, Salomé, … Nada disso afasta o fato de que o “estupro é um dos crimes mais terríveis da Terra” (Kurt Cobain), mas um crime que, no Brasil, permite “piadas”. Certa vez, um famoso fato político em Brasília acarretou uma denúncia-crime, onde o Ministério Público, na pessoa de Ela Wiecko expunha: “Ao dizer que não estupraria a deputada porque ela não ‘merece’, o denunciado instigou, com suas palavras, que um homem pode estuprar uma mulher que escolha e que ele entenda ser merecedora do estupro”. O problema é esse! Quando a misoginia possui um “representante” enaltecido como líder, as ações contra a mulher se “justificam” pelo exemplo de conduta ou permissão concedida, ainda que subliminarmente, pelo líder. Eis a importância de conhecermos os reais pensamentos e condutas das pessoas em quem votamos. Mas se a situação é grave no campo das relações sociais, muito mais preocupante é quando isso avança pelo campo jurídico. Não interessa: se a mulher disse NÃO!, há estupro. Também se estava bêbada ou drogada, sem poder dizer NÃO!, há estupro. No passado tínhamos a tese do crime contra a exposição da honra, quando o homem traído ficava como que jungido do direito de limpar sua honra, assassinando sua mulher. Os mais velhos vão lembrar do caso Doca Street-Ângela Diniz, para citar apenas um dentre tantos outros crimes barbaramente cometidos contra mulheres, “em nome da honra do marido”. Recentemente, vimos de forma absurda um grupo de jogadores de futebol defender a conduta de outro jogador, que, por provas por ele mesmo geradas (áudios e mensagens), reconheceu condutas para reduzir a capacidade de resistência de uma mulher e dela se valer sexualmente. Mas, o mais assustador é o surgimento do que está sendo denominado atecnicamente de “estupro culposo”. Qualquer aluno mediano de início de curso de Direito sabe que, na esfera criminal, só se pune a conduta culposa quando ela é prevista em lei. O artigo 213, do Código Penal, que tipifica (prevê como crime) o estupro não contém a figura na modalidade culposa. Muito pelo contrário, o artigo legal só mostra situações para agravar a pena por tal crime (casos em que há lesão corporal ou morte da vítima). Mas, aqui, importa entender como se explicam as condutas de um Juiz e de um membro do Ministério Público. Eles não inventaram algo não previsto na lei penal como o estupro culposo, mas eles permitiram no curso de uma audiência que uma vítima fosse humilhada, destratada, desqualificada, desumanizada. Não me parece que coubesse à mulher provar que não queria, mas ao acusado provar que ela aquiesceu com a prática do ato. Ainda que se alegue que não ocorrera estupro, ele acabou se consubstanciando na audiência visto ao que foi submetida a vítima (humilhação e tortura psíquica). Verdade que estupro culposo já seria indefinível, pois não se força alguém a um ato sexual sem intenção alguma. Mas, lembre-se que estupro nada tem a ver com prazer ou sua obtenção; estupro tem a ver com submissão, poder, ódio/aversão e violência. Qualquer pessoa que tenha tido em sua vida uma figura feminina (mãe, irmã, tia, amiga, filha) – e todos temos porque, sem exceção, somos todos nascidos de uma mulher – não pode concordar com esta ou qualquer outra situação de misoginia. E misoginia sobrou em quantidade na mencionada audiência sob uma clara omissão do Juiz e do representante do Ministério Público. Não se trata de feminismo, mas de humanidade ou humanismo. Em regra, estupradores e seus apoiadores são homens que têm ódio e aversão genericamente às mulheres, pois foram, anteriormente, dominados, repelidos, abandonados e/ou humilhados por uma ou várias. Outras vezes, têm problemas nas relações sexuais (conceder prazer, impotência, …) ou dificuldade com a autodefinição de gênero – o cara não sabe o que de verdade gostaria de ser. Neste caso, se para o estuprador não há palavras, quanto ao seu advogado há que se ter restrições. Ainda que todo cidadão sob julgamento mereça defesa, os advogados não são obrigados a abraçar todas as causas e não podem se afastar de um limite ético, por mais tênue que ele seja. Na minha vida profissional já recusei clientes por questões morais e de convicção pessoal, ou deixei claro que uma defesa respeitaria limites éticos e morais. As condutas de advogado, promotor e juiz (profissionais que lidam com o direito e a justiça), neste caso, foram abomináveis, repulsivas e inaceitáveis, para dizer o mínimo. A sociedade não pode se calar. O esforço tem que ser de todos. Estes profissionais devem ser punidos com o rigor da lei que lhes couber. É preciso deixar claro que este tipo de conduta não mais se admite! Vale a frase de Martin Luther King: “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar.” Parece que cada dia o Brasil se esforça mais, para ficar na pior posição com relação aos avanços da humanidade em direitos e justiça. Qual será o próximo crime legalizado? Triste história … Que não haja o silêncio dos bons, para que não prevaleça a vontade dos maus.
Autoria: Fernando Sá e Márcia Siqueira
Autores citados: Albert Camus, Leandro Karnal, José Saramago, Fernando Meirelles, Gael García Bernal, Kurt Cobain, Wislawa Szymborska, Ela Wiecko, Martin Luther King

BACURAU11 de novembro de 2020
A NOITE DE 12 ANOS 11 de novembro de 2020

NÃO EXISTE ESTRUPO SEM INTENÇÃO
TODA E QUALQUER RELAÇÃO HUMANA TEM QUE SER CONSENSUAL!
A PRÓPRIA PALAVRA ESTRUPO JÁ É CONDENÁVEL, POIS IMPERA A VIOLÊNCIA DE UMA DAS PARTES , NO ATO SEXUAL!
CONSIDERO O ESTRUPO UMA MANIFESTAÇÃO CLARA DE UMA MENTE DOENTIA !
Maria, OmnisVersa comunga de seu entendimento. A sociedade tem que se manifestar e lutar contra qualquer tipo de impunidade criminal. Gratos por sua manifestação. E continue nos acompanhando.