“A gula começa quando deixamos de ter fome.” (Alphonse Daudet)
Josué de Castro foi um dos maiores estudiosos e conhecedores da fome, e uma citação sua parece dizer tudo: “Fome e guerra não obedecem a qualquer lei natural, são criações humanas.”. A citação remete minha mente imediatamente a José Saramago, para quem “não é a pornografia que é obscena, é a fome que é obscena”. O mais assustador decorre do fato da fome ser crescente e pulsante quando mais se fala em gastronomia, mais se assistem canais especializados em culinária, aumenta a variedade de programas sobre comida, crescem vertiginosamente os sites de receitas, além do avanço tecnológico para produção e manutenção de safras. Em grande parte, o problema da fome é político, e Herbert de Souza já dizia que “o Brasil tem fome de ética e passa fome em consequência da falta de ética na política”. A questão aqui, me parece além das fronteiras e mais planetária. Existe esta falta de ética, misericórdia e compaixão na raça humana. E sequer falo aqui de casos mais graves e dolosos de extermínio pela fome, como recentemente presenciamos com povos originários no Brasil. “Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo e ninguém morreria de fome.” (Mahatma Gandhi) Fome é a sensação fisiológica pelo qual o corpo percebe que necessita de alimento para manter suas atividades inerentes à vida. Ela em sentido lato pode envolver inanição e desnutrição, mas, certamente, significa, insegurança alimentar. Sendo a fome uma sensação fisiológica, como dizia Sêneca, “a fome não é exigente: basta contentá-la; como, não importa”. Mas, saciar a fome não significa alimentar efetivamente, no sentido de nutrir (prover de alimento com substâncias nutritivas). Mesmo quem não passa fome, não necessariamente se nutre. Por vezes, sofre até de gula, mas não atende ao critério de nutrir-se. Peter de Vries indica que “a gula é uma fuga emocional, um sinal de que algo está nos comendo”. E vencido esse pecado já transformado em sinal ou consequência de disfunção psíquica, chegamos à gastronomia, ou seja, prática e conhecimentos relacionados com a arte culinária. “As abstrações são encantadoras, mas sou a favor de que se deva também respirar o ar e comer o pão. (Hermann Hesse). E a gastronomia, hoje, sequer pode ser necessariamente vinculada a opsofagia (gosto por apreciar refeições finas e requintadas).Quando tal vinculação era vívida, entendia-se a frase de Millôr: “Gastronomia é comer olhando pro céu.”. Porém, a gastronomia tem se tornado mais um elemento de diferenciação social pela frequência a determinados locais exclusivos ou de destaque, que repercutem para “check-ins” nas redes sociais, e onde, eventualmente, os pratos têm assinaturas, mas não necessariamente atendem aos paladares reais desses frequentadores. Mais ou menos como a roupa duvidosa, mas da marca internacionalmente conhecida e cara, que faz destaque no “instagram”. Lembremos que o paladar, pelo córtex gustativo, junto com o olfato e o nervo trigêmeo determina os sabores dos alimentos, e as percepções podem ser boas ou ruins diferentemente para quem deglute o mesmo alimento. Independente desse modismo, que também atinge chefs e restaurantes, me preocupa uma gastronomia do desperdício, onde alimentos são subutilizados ou descartados sem a percepção de se tratar de algo que falta a tantas pessoas. A realidade da fome exige uma gastronomia ética, sem desperdício, com visão responsável. Reconheço alguns talentos nesse sentido como Carol Fiorentino. Mas ela não deveria ser a exceção, mas a regra. Vittorio Buttafava alega que “o verdadeiro desperdício nunca foi das coisas”, mas da vida. Todavia, o desperdício alimentar envolve o desperdício de vidas. Quando desperdiçamos alimentos seja em nossas casas, seja nos restaurantes, mercados, transportes, …, se tem desperdício de vidas. Precisamos não só de caridade e misericórdia, mas de empatia para entender o problema da fome. “Temos de ir à procura das pessoas, porque podem ter fome de pão ou de amizade.” (Madre Teresa de Calcutá)
Autoria: Fernando Sá
Autores citados: Alphonse Daudet, Josué de Castro , José Saramago, Herbert de Souza , Mahatma Gandhi, Sêneca, Peter de Vries, Hermann Hesse, Millôr Fernandes, Vittorio Buttafava, Madre Teresa de Calcutá