Desde a mais tenra idade, lembro de um ritual inabalável na família: o momento das refeições. Ao menos no jantar, quando todos podíamos estar reunidos, estávamos à mesa juntos. Algumas regras predominavam: a TV estava desligada. Também não se comia à frente da televisão, mas sim à mesa. Não éramos ricos e raramente a comida era sofisticada, mas necessariamente estávamos juntos, com a mesa posta (toalha, pratos, talheres e travessas de servir). Aquele era o momento em que se dava a efetiva convivência familiar. Naquele momento, discutíamos todo e qualquer assunto, tal qual dividíamos as experiências diárias. Ali aprendi o valor do trabalho e suas dificuldades a partir do que meu pai contava, bem como a respeitar minha mãe pelo reconhecimento do aspecto árduo das tarefas de mãe e dona de casa por ela descritas. Eles, por seu turno, conheciam minhas experiências escolares de contato com o mundo. Creio que daqueles momentos pude formar grande parte do meu caráter, pois agreguei valores que me afastaram dos preconceitos, da misoginia, do ócio, do racismo, …, me despertando para valores e reconhecimento dos outros como iguais. Como as crianças aprendem pelos exemplos, o ritual das refeições foi tão marcante que, hoje, morando só e sem qualquer apoio nos serviços de casa, faço as refeições à mesa com esta posta. Alguns me acham louco, pois isso corresponde a um trabalho extra. Não! Aqueles são momentos em que revivo as lembranças da convivência familiar, reflito, pondero, reexamino meus conceitos, entendimentos e compreensões. São os momentos em que me sou o melhor conselheiro. “Não consigo lembrar dos livros que li ou das refeições que comi, mesmo assim, eles me fizeram a pessoa que sou.” (Ralph Waldo Emerson) Mas falo de uma experiência que transborda família e indivíduo. Tal qual meu pai, acredito no encontro ao redor da mesa, como local democrático de conversa, celebração e solidariedade. E como ele, sempre reúno os amigos em rituais alimentares. Quase semanalmente, recebo os amigos (família de escolha pelo coração) e jantamos juntos. Sentamos à varanda para comer, beber, discutir, dar dicas (culturais, de viagem, …), ouvir música, e, principalmente, rir muito. Por mais das vezes, as horas se estendem à madrugada, e cada encontro é o reforço da amizade e louvor a ela. A lua que por vezes surge parece vir querer juntar-se a nós e conosco comemorar o prazer de convivermos. Brinco que meu apartamento é o lar também para os amigos. Nunca saímos sem aprendermos e apreendermos algo de uns pelos outros, sem entendemos melhor nossas individualidades e semelhanças, sem dividirmos o que faz rir e faz chorar, … Por vezes a vontade de permanecer juntos, mesmo quando acaba, fica nos objetos esquecidos (brincos, guarda-chuvas, anéis, travessas, …). A perda de rituais, como o da refeição pelas famílias, oferece um bom indicativo do que presenciamos hoje em comportamentos egoístas, preconceituosos, abusivos, intolerantes; pessoas para quem a casa é alojamento e não lar. A quebra da convivência familiar é o início do fim da capacidade da vida em sociedade. A família é o grupo social primeiro que lhe prepara para a vida no grupo social maior. E não se alegue que o mundo está veloz, que os pais são mais ocupados, que as mães trabalham, ou que os filhos têm muitas atividades. A opção de formar um núcleo familiar importa, antes de tudo, numa renúncia parcial do tempo individual pelo tempo coletivo. Ninguém é obrigado a formar uma família, mas se o faz, assume os deveres pertinentes. Certamente, os meus momentos de lembranças felizes de criança à mesa se repetem hoje com os amigos, tal qual o preparo para os momentos difíceis, entendidos naquelas mesmas oportunidades de refeição familiar, me prepararam para os momentos difíceis de hoje. Vou por a mesa agora, e viver esse momento mágico e sagrado!