“Passa o cartão! Passa o cartão! (bordão de feira-livre)
Jean-Jacques Rousseau elaborou “Do Contrato Social”, e, na primeira frase da obra, diz que “o homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se acorrentado”. E a partir daí reflete sobre a razão ou motivação desse ser, que nasce livre, se algema a uma ordem social formada por convenções, ou seja, na negativa do natural. O autor vai assim tratar das formas de sociedade (familiar, política, …). Mas, o importante é que ele conclui que “ceder à força constitui ato de necessidade, não de vontade; quando muito, ato de prudência”. A força é um fato para Rousseau. Falando em sentido bem amplo e sem uma preocupação interpretativa clássica, acredito, piamente, que, no início dos grupos humanos da pré-história, a condição natural era a força para suprir a necessidade e garantir a subsistência. E a evolução humana se inicia quando os indivíduos desses grupos começam a se interrelacionar contratando, ou seja, eles estabelecem a troca das posses excessivas para garantia de subsistência. Aquele que tinha muita caça inicia a entrega de parte da carne em troca dos vegetais que eram abundantes a quem os colheu. Assim, nasceram as relações comerciais, os contratos, e as feiras-livres. Parte dos sambaquis encontrados indicam a caracterização de grupos já sedentários pela probabilidade dos indivíduos poderem atender suas necessidades pelas trocas ou escambos. O surgimento do dinheiro permitiu a evolução das trocas pelas compras conduzindo a novas relações comerciais e pessoais, bem como a formação de povoados, mas também trouxeram guerras pela dominação à força de áreas cobiçadas por suas riquezas. Em uma viagem pelo velho continente sempre nos deparamos, dentro das cidades, com as praças de mercado, onde tudo se iniciou. Ainda existem as feiras especializadas por cidades, nos dias de hoje. Há também os locais próprios – subúrbios, onde os feirantes por vezes se instalavam antes de adentrar à cidade para venda de seus produtos oriundos das atividades campesinas. As grandes feiras-livres se tornaram famosas por seus portes, bem como, pela diversidade, peculiaridade e especificidade de seus produtos. A competição e controle dessas feiras trazem profundas mudanças históricas como na chamada “Queda de Constantinopla”. A necessidade ou desejo por produtos gerou a busca de homens de determinadas terras pelos produtos ofertados em outras terras, ainda que de forma aventureira na busca de novos caminhos. Lembre-se a figura marcante de Marco Polo e a motivação que serviu ao início das grandes navegações. A exiguidade de determinados produtos gerou os leilões, que eram formas de feiras reguladas. Vê-se, portanto, que as feiras-livres não são algo menor como os incautos podem pretender. Elas são um dos fundamentos da evolução da humanidade e de sua história. No Brasil, a primeira feira-livre de forma organizada, autorizada e regulada pelo poder público, ocorreu somente em 25.08.14. A diversidade de produtos e serviços agregados (carregadores, descascadores, …) tornaram as feiras-livres em atividade economicamente relevante, proporcionando o sustento de várias famílias. Recentemente, as feiras-livres pareciam estar vivendo um processo de extermínio pela “modernidade elegante e impessoal”. Mas, se analisarmos bem, elas se modificaram, estando cada vez mais presentes nas buscas “on line”, quando se inicia na busca de um produto e se acaba no conhecimento ou aquisição de outros tantos e tão diferentes, ao sermos transferidos de “barracas em barracas” virtuais. Vamos além! Uma grande característica das feiras-livres é a diversidade de produtos em um mesmo local. Você tem percebido as lojas de vestuários conjugadas com salões de beleza? As barbearias com cervejaria, cafeteria e sinucas? Os postos de gasolina com “delys”, academias de ginástica e sanduicherias? E as farmácias que o que menos tem são remédios? As feiras-livres estão sendo reinventadas. O mais engraçado é que, muitos dos preconceituosos em relação a elas, amam esses pontos acoplados de comercialização de produtos e serviços. Sumiram os bordões divertidos e vieram os slogans. As cores naturais dos produtos foram substituídas pelas definições psicológicas dos matizes e seus efeitos. Portanto, toda a evolução humana, com seus erros e acertos, no fundo, nunca conseguiu nos tirar das feiras-livres, nem mesmo no caso daqueles que as diminuem de importância ou necessidade. Enquanto existir necessidade e desejo, a feira-livre estará lá, sob um formato ou outro.
Autoria: Fernando Sá
Autor citado: Jean-Jacques Rousseau
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