Não sei se foi meu anjo da guarda, mas sempre busquei os bons exemplos e não os maus. A questão é que comportamentos errados podem se tornar exemplos incorporados ou hábitos, e as pessoas passam a praticá-los como algo normal. A isso se chama “normose”. Aprendi isso no compartilhamento do saber de um bom amigo. Bem, mas a história é mais peculiar e menos teórica. Quando adolescente, um parente próximo – mais privilegiado economicamente – fazia festas, almoços e jantares (que chamarei, sem tecnicismo, de celebrações) em que acreditava compartilhar suas bebidas e produtos importados (à época, verdadeiros tesouros) com pessoas supostamente do “high society”. Meus pais, sempre cautelosos, quando convidados e participando, não deixavam de levar algo de um bolo a alguma bebida. Eu via de forma dantesca aquelas celebrações, onde o que não havia era compartilhamento. Os anfitriões recebiam com arrogância e tentavam obter sempre algo (uma tirinha na coluna social, um favor ali e outro acolá, …); buscavam troca e não compartilhamento. E seus comportamentos afetados não condiziam com aquilo que gera o compartilhamento (prazer em dividir, amor, felicidade, …). Os comensais, por seu turno, se aproveitavam do que era oferecido, e retribuíam com os piores comentários sobre e às costas dos anfitriões. Não tinham pudor em figurarem como exploradores. Era um show dos horrores! E, hipocritamente, anfitriões e comensais chamavam isso de amizade. Mesmo o que meus pais levavam não era compartilhamento, pois o que eles queriam é não serem confundidos com os comensais exploradores. Aturei isso por pouco tempo e dei um basta, não sem uma grave discussão com meu pai. Meu comportamento assertivo nunca poupou nem ele. Como os tempos mudam e as marés cheias se tornam vazias antes de cheias novamente, quando não mais houve a condição econômica, para as celebrações, já não existiam amigos, proeminência social (que coisa decadente de ouvir e escrever), convites, … Tudo ruiu como um prédio sem alicerce. Não havia essência; só frágil materialidade. Os valores materiais que permeavam tudo também tiveram seus efeitos na linha sucessória, que se perdeu. Só havia troca e não se sabia construir; faltava essência. Óbvio? Claro! Mas, às vezes, só com um tropeço, uma queda e um nariz quebrado se enxerga o óbvio. Essa história, presenciada por mim e que julgava um absurdo e uma excrescência na adolescência, se tornou um daqueles filmes repetidos da sessão da tarde conforme fui crescendo e conhecendo outros ambientes (seja de estudo ou de trabalho). E tantas outras vezes eu assisti o óbvio ululante, sabendo exatamente onde o trem descarrilharia. Não há surpresa no óbvio, só para quem se engana. Trocas e doações não significam compartilhamento, pois compartilhar tem a ver com essência, ou seja, um aglomerado de sentimentos e posturas positivas e despretensiosas. Se a celebração tem outras motivações, não basta chamar de compartilhamento, pois a designação não muda a essência, e o tombo será igual e repetitivo.