ERAM OS ANOS 80
“Precisamos de mais amor se queremos acabar com aAids.” (Elton John)
A década de 1980 foi um momento muito próprio. No Brasil, apesar da década econômica perdida e uma inflação galopante, havia uma ebulição nos campos cultural e político. Surgiam bandas de Rock, criando o chamado Rock Nacional; o cinema nacional voltava a ter espaço; a cena teatral explodia; e a ópera chegava ao povo nos Jardins da Quinta da Boa Vista. A população nas ruas pedindo eleições diretas para Presidente, enquanto o último general-presidente, reconhecendo a incompetência sua e do regime militar, pedia para ser esquecido; um general idiota chicoteando carros em Brasília viraria uma chacota, tal qual um que recentemente aceitou ser Ministro da Saúde. Eu ia da adolescência para a juventude passando pelo 2º. Grau e cursando a faculdade de Direito. Com toda a dureza econômica, vivíamos uma explosão de felicidade, cantando Blitz, Titãs, Legião Urbana, RPM e Barão Vermelho, assistindo “Marvada Carne” e “Bete Balanço”, durante e após marcharmos nas ruas contra a ditadura e o incompetente governo de José Sarney. Mas uma sombra nos encobria. Fazia opaco a nós e ao mundo, o risco ao avanço da liberdade sexual. O HIV aparecera na África e era detectado nos EUA. Um vírus desconhecido que atacava a imunidade das pessoas, que acabavam vitimadas por distintas doenças. Mas o pior estava na destruição que esse vírus fazia ao conceito de humanidade. Tal qual na presente pandemia, a falta de empatia, compaixão e misericórdia se impunham. Havia o preconceito. “Aids: o vírus do preconceito mata mais que a doença.” (Paiva Netto) Denominavam a AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) por câncer gay; líderes religiosos falavam em castigo divino aos sodomitas; pessoas não mais encostavam ou queriam respirar o mesmo ar que outras de “opção sexual alternativa”. Piadas preconceituosas sobre a doença e doentes se acumulavam. O fantástico Caio Fernando Abreu dizia: “Tem muita gente contaminada pela mais grave manifestação do vírus – a aids psicológica… Do corpo, você sabe, tomamos certos cuidados, o vírus pode ser mantido à distância. E da mente?” As camisinhas se impuseram então tal qual as máscaras hoje. Minha geração encontrou o sexo encapado e não o sexo livre. Mas, logo-logo, a realidade bateu à porta. Pessoas morriam não simplesmente por serem gays, mas por relações sexuais de diversos grupos (hétero, homo ou bi-sexuais) ou por transfusões de sangue necessárias, como no caso dos hemofílicos e vítimas de acidentes graves, ou, ainda, no uso de seringas comuns por dependentes de drogas injetáveis. E, assim, fomos perdendo pessoas do quilate de Henfil, Cazuza, Lauro Corona, Herbert de Souza, Freddy Mercury, Renato Russo, … Morriam também máscaras como a masculinidade hollywoodiana representada por Rock Hudson. A AIDS já não era mais coisa de gay – como se tivesse sido algum dia, e isso ficou mais claro quando se descobriu Magic Johnson como um dos infectados. Por outro lado, algumas pessoas expostas não foram infectadas. Com toda a sinceridade, Ney Matogrosso expõe: “Eu tinha passado pela mão de muitos que estavam doentes. Quando o meu teste deu negativo, eu pedi uma explicação a diversos médicos. Não tem nenhuma.”. A comunidade gay ia ficando menos infectada que as mulheres de meia idade casadas e com histórico sexual de um único parceiro. Como dizia um amigo: talvez haja mais gays casados com mulheres que gays solteiros ou casados com pessoas do mesmo gênero. As campanhas de precaução se seguiam, e filmes como “Philadelphia” e livros como “Antes do Anoitecer” ou “Ao amigo que não me salvou a vida” expunham a questão rompendo parte da visão preconceituosa. Pela falta de possibilidade de controle geográfico se impunha um tratamento mundial, como bem lembrava Nelson Mandela: “A Aids é um grande problema a ser enfrentado pelo mundo todo. Lidar com ele requer recursos muito além da capacidade de um continente. Um único país não tem a capacidade de lidar com ele.” Vários artistas e ícones internacionais se envolveram com a mobilização tais como: Madonna, Elizabeth Taylor, Elton John, Princesa Diana, … No Brasil, Cazuza não só enfrentou a doença, mas expôs o problema e deixou a questão clara para a sociedade. Herbert de Souza, já debilitado, mostrou sua grandeza conduzindo o projeto Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, concomitantemente às suas ações pela ética na política e no esclarecimento sobre a doença de que era vítima. Esses brasileiros, como alguns outros, apesar da doença, produziram um cenário novo de ensinamento sobre o vírus e empatia pelos doentes. Ao contrário, governos e instituições agiram com desídia. Drauzio Varella lembra que “o papel da Igreja nessa história toda [do HIV] foi um papel criminoso”. Infelizmente, vimos um crescimento da AIDS na última década, homens e mulheres infectados na mesma proporção e crianças nascendo infectadas (apesar de tratamentos disponíveis para grávidas). E aqui não é só a questão política, mas também uma sensação gerada pelas empresas farmacêuticas de que o HIV é um vírus sob controle medicamentoso. Mas, não é só isso! São as mesmas empresas que quiseram a todo custo manter patentes sobre medicamentos que poderiam ter salvo milhões de vidas – sempre desejando lucro com e a partir de doenças. Conheço bem o assunto, pois trabalhei diretamente como consultor na avaliação de quebra de patentes para o coquetel anti-AIDS. Precaução ainda é o caminho seguro. Não podemos esmorecer na luta contra a AIDS. Mas essa luta envolve também garantir a dignidade e o tratamento justo aos portadores do HIV. O respeito é essencial para todos os soropositivos!
Autor: Fernando Sá
Autores citados: Elton John, Paiva Netto, Caio Fernando Abreu, Ney Matogrosso, Nelson Madela, Drauzio Varella
Foto: flickr.com
Chris Randall