“O hábito é o grande guia da vida humana.” (David Hume)
Meu pai sempre manteve o rosto escanhoado com uso de um barbeador elétrico – equipamento que nunca me serviu. Meu problema com o barbeador elétrico talvez mais tenha a ver com minha (falta de) coordenação motora do que com minha barba. Mas essa história começa antes. Meu avô, militar reformado, era homem de alguns hábitos próprios. “Não há nada de tão absurdo que o hábito não torne aceitável.” (Cícero) Diariamente, às 11hs da manhã, ele almoçava, após o que, tomava uma caneca de café com leite e saía com seu carro para o barbeiro, onde fazia a barba, aparava o bigode e alinhava o cabelo escovinha. Tudo isso precedia o carteado ou jogo de bocha com os amigos aposentados do bairro. Tudo era sincronizado, pois, quem se atrasava não teria dupla para o carteado. Para mim, em plena adolescência, aquilo era maçante. E não entendia aquela ida diária ao barbeiro. Não conhecia a frase de Millôr Fernandes, segundo a qual “numa vida média de 50 anos, 80 a 100 dias são empregados pelos homens só no ato de fazer a barba”. E não pense que barba não é importante, afinal ela está lá sempre, por isso Lutero se serviu dela para fazer analogia com o pecado original (“O pecado original está em nós como a barba. Barbeamo-nos hoje, parecemos apresentáveis e nosso rosto está limpo; amanhã nossa barba cresce de novo, e não para de crescer enquanto permanecemos na terra. De maneira semelhante, o pecado original não pode ser extirpado de nós; ele brotará em nós enquanto vivermos.”). Logo que comecei a ter barba, passei a me valer de barbeadores comuns – desses comprados em supermercados, e com os quais me cortava – voltamos à minha (falta de) coordenação motora. Vivi fases de barba por fazer (Mickey Rourke dava o tom), cavanhaque, rosto liso, … Mas, finalmente, decidi manter a barba, e como diz minha mãe: “- Se vai ter essa barba, cuide, mantenha!”. Bem, já morando no Rio de Janeiro, descobri uma barbearia próxima; e as barbearias agora são “gourmets”, onde você tem TV, música ambiente, chopp, cerveja artesanal, café, … Aliás, tem barbeiro que ganha mais que advogado e engenheiro. Eu que era tão crítico do hábito do meu avô, passei a ter “meu barbeiro”, e frequentar a barbearia semanalmente. Pois é, deveria ter aprendido com Ovídio que “nada é mais forte que o hábito”. Estabeleci um novo ambiente de contato social, pois você acaba conhecendo os barbeiros, a clientela, … e tendo um novo espaço para o chopp ou café. Assim, a coisa se torna tão cotidiana, rotineira e introjetada, que durante o isolamento social, eu sentia uma profunda falta de ir à barbearia. Esse é um destino semanal necessário. Meus amigos sabem do meu “dia da barbearia”, sabem quem é “meu barbeiro”, fazem piadas sobre minha frequência na barbearia, …; e mesmo meus hóspedes acabam se valendo da “minha” barbearia. Mas, fui surpreendido com a saída do meu barbeiro, e iniciei um processo de escolha do substituto dentre os demais profissionais barbeiros. Encontrei! Os momentos de barbear e cortar ou aparar o cabelo também são momentos de uma quase sessão terapêutica. Além do que, há a diversão das histórias contadas, piadas e implicâncias de barbeiros e clientes – parece que virou família. Além disso, tem um lado cômico, sempre que o barbeiro vem com a navalha me lembro do conto “Os assassinatos da Rua Morgue” de Edgard Allan Poe. Mas, um novo barbeiro também significa um novo estilo. Meu rosto agora porta um cavanhaque no estilo do início do século passado. Falhar na ida semanal à barbearia causa uma certa culpa, e, o mais grave, um desalinho no rosto. Portanto, faz-se agendamento pelo whatsapp, e aquele é um compromisso tão certo quanto à missa de domingo. Recentemente, por razões de saúde, fiquei duas semanas sem ir à barbearia. No espelho, me defrontava com uma foto de D. Pedro II, daquelas dos livros escolares. Assim que pude, corri para lá, e fiz uma faxina facial. Cheguei em casa e já era outro. Já não há uma mera prestação de serviço, mas uma relação de convivência num ambiente de camaradagem, amizades, risos, … São momentos de descontração tão importantes para mitigar as chatices que o dia-a-dia, por vezes, cisma de nos impor. O cotidiano inclui a barbearia. Meu avô estava certo, ainda que talvez excessivo na frequência diária, quanto à visita ao barbeiro.
Autor: Fernando Sá
Autores citados: David Hume, Cícero, Millôr Fernandes, Lutero, Ovídio, Edgard Allan Poe.