COTAS, PARA QUE TE QUERO?
“Não adianta a adoção de cotas para negros e índios se o ambiente escolar continuar reproduzindo uma visão de mundo branca”. (Luiz Antônio Simas)
O Brasil é fruto de um sem número de etnias que, com o tempo, se miscigenaram, sendo difícil por vezes, ou até hilário, quando ouvimos falar em brasileiro de “raça pura”. O problema é que essas etnias chegaram em condições diferentes no país, para fins distintos, e acabaram tendo evoluções distintas no processo de nacionalização dos brasileiros. Temos os negros vindos na condição de escravos, europeus vindos como senhores (portugueses originais) e trabalhadores (colonizações alemãs, suíças, italianas, …), orientais como trabalhadores (japoneses, coreanos, …) e que chegaram em diferentes períodos da história pátria. Talvez, por força da escravidão, a situação mais crítica seja dos negros, sobre os quais houve um olhar de inferioridade e uma negativa de oportunidades, como característica da sociedade brasileira em formação. Tal fato gerou uma injustiça social, que podemos hoje, com a visão cristalina de Silvio Almeida, chamar de racismo estrutural. Porém, há opiniões contrárias! Felipe Lungov postula que a dívida histórica entre brancos e negros é um mito. Mas há uma questão de fundo maior, pois a Constituição Federal, promulgada em 1988, indica a necessidade de integrar partes esquecidas da sociedade no direito à educação superior. Para cumprimento do preceito constitucional, em meados do ano 2000, espelhando o que fora feito em 1960 nos Estados Unidos, foi implementado um modelo de cotas para acesso a vagas como estudantes na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Essa experiência vai trazer uma normatização nacional da matéria com a denominada Lei de Cotas Raciais, em 2012. Na esfera educacional, o sistema de cotas seguiu firme, estando implantado em todo o Brasil e nas principais Universidades do país, mas sempre envolto em polêmicas e discussões. Longe de ser uma unanimidade, o sistema tem por finalidade reduzir as desigualdades sócio-econômicas e educacionais existentes em todas as sociedades, mesmo as mais evoluídas, como afirma Luiz Antonio Simas. Há questionamentos razoáveis e preconceituosos com relação ao sistema. Lembremos que das 46 universidades brasileiras que figuram entre as 800 melhores do mundo, 39 são públicas, apenas 7 são privadas. A qualidade e gratuidade das Universidades Públicas gerou uma praxe social onde famílias com melhores condições econômicas educam seus filhos em colégios particulares (considerados melhores que a escola pública) para acessarem com facilidade o ensino superior privado. Então, ofertar 50% desses lugares privilegiados de ensino (qualidade e gratuidade) a quem vem de camadas pobres fere profundamente o modelo estratégico de educação feito pelos pais mais abastados economicamente. Há também uma visão preconceituosa e ignorante de uma camada da sociedade, que acha que seus filhos não deveriam compartilhar a mesma sala de aula com uma pessoa de baixa renda, pois esta seria improdutiva ou teria menor capacidade de aprendizado. Outros grupos entendem que, partindo dos fatos históricos – a escravidão e o extermínio dos indígenas, o sistema de cotas deveria ser um ponto pacífico de justiça retributiva e reparadora. Importante frisar que o sistema de cotas para vagas universitárias tende a ser desnecessário, se e quando houver uma aposta na educação de base, e esta começar a gerar resultados. Na educação de base com qualidade para todos mora o futuro igualitário. Uma outra face do problema está em um aspecto econômico, pois grande parte dos beneficiários do sistema de cotas quando conseguiam galgar a uma Universidade se tornavam alunos mensalistas de instituições privadas. Eric Zambon afirma que o ensino superior privado perdeu 16,5 mil estudantes, segundo o Censo da Educação Superior, com a implementação do sistema de cotas. Vale destacar que a reserva de cotas não se destina somente aos negros, devendo abranger outras “minorias” como os indígenas, os quilombolas, os pardos, e os portadores de deficiências dentre outros. Os benefícios do sistema são inegáveis, mas sua implementação ainda exige aperfeiçoamento. Porém, os defensores da “meritocracia” e os negacionistas da dívida histórica tem alcançado voz no Ministério da Educação, como percebe-se quando Ricardo Vélez Rodríguez, ex-ministro da educação, afirma que “a ideia de universidade para todos não existe” e que essas instituições deveriam ser “reservadas para uma elite intelectual”, ou José Rollemberg Leite Neto, menos incisivo, ao afirmar que a dívida histórica não pode ser paga com cotas. Ocorre que, todo sistema, ainda mais quando revolucionário, exige constante avaliação e melhoria. Por diferenciar e beneficiar alguns, o sistema trouxe, de plano, o problema das fraudes. Não raro, vemos e ouvimos falar sobre escândalos, seja no acesso às Universidades, concursos públicos para acesso a cargos e empregos públicos. O mau uso do sistema não pode ser a justificativa de seu fim ou de sua inadequabilidade. Portanto, há duas lutas a serem travadas: uma, pelo aperfeiçoamento do sistema, para que possa, efetivamente, cumprir sua função, e, outra, pela sua correta aplicação, com meios eficazes, coibidores e punitivos às fraudes. Atente-se que, no ano tão peculiar de 2020, vimos a Universidade de São Paulo (USP), com ineditismo, expulsar um aluno que não teria logrado êxito em comprovar a autodeclaração de raça e condição de baixa renda. A questão ainda não teve fim, havendo a possibilidade de recurso pelo aluno. Mas outros casos como esse despontam. Independentemente de críticas e dificuldades, o sistema de cotas já mostrou a que veio e que veio para ficar, então, deveríamos seguir neste caminho, ainda que com erros e acertos – com os cuidados de estilo, mas sempre em direção de uma sociedade mais justa e igualitária, e esperando que o investimento na educação de base com qualidade, como opção para todos, faça desnecessário o sistema de cotas para acesso ao nível superior de ensino. Por que dizer que tal sistema não pode retroceder? Ele saiu da esfera educacional e chegou aos concursos públicos para preenchimento de cargos e empregos públicos, tal qual, no âmbito eleitoral. Novidade foi a estreia de cota racial para candidatos, já nas eleições de 2020. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) definiu que os partidos políticos deveriam reservar parte dos recursos do fundo eleitoral para candidatos negros, como já acontece com candidatas femininas. Os fundos públicos e o tempo de televisão destinados à campanha deveriam ser divididos proporcionalmente entre todos os candidatos, oferecendo igualdade de condições, independentemente de sua cor. Acredite se quiser, o tema gerou divergência entre os dirigentes dos partidos políticos, que alegaram dificuldades na sua implementação. Mas lembrem-se aqui as palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso, ao tratar de “dívidas históricas da escravidão, de um certo racismo estrutural”: “o Brasil precisa de pessoas negras em postos importantes para serem símbolos motivacionais”. Esta visão, favorável ao sistema de cotas e seu aprimoramento, fez também a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) analisar políticas de como diminuir o racismo, inclusive com uma proposta de sistema de cotas para negros feita pelo único Conselheiro Federal negro, advogado André Costa. Também no âmbito privado encontramos a adoção de sistemas de cotas. Por exemplo, o Magazine Luiza abriu um programa para treinees negros, o que tem gerou muita discussão e se fez um dos assuntos mais comentados das redes sociais. Parece inteligente tal posicionamento em uma sociedade de consumo em que 55% dos indivíduos são negros. A reflexão deveria ser: por que destruir e não avaliar e aperfeiçoar o sistema? E por que condenar o sistema de cotas e não exigir educação de base qualificada e de opção universal? Mas talvez o que prevaleça, hoje e desde sempre, seja o egoísmo, o preconceito e a arrogância. E onde há arrogância, o mal está instalado.
Autoria: Alessandro Antunes, Leonardo Campos e Márcia Siqueira
Autores citados: Luiz Antonio Simas, Silvio Almeida, Felipe Lungov, Eric Zambon, Ricardo Vélez Rodríguez, José Rollemberg Leite Neto, Luis Roberto Barroso, André Costa
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Lourdes ÑiqueGrentz