É AMOR O QUE SE SENTE?
“O medo de amar é o medo de ser livre” (Beto Guedes/Fernando Brant)
Tema recorrente tanto na vida real quanto no imaginário das pessoas, o Amor – ou a equivocada percepção dele – muitas vezes tem deixado um rastro de desencontros, dores e ressentimentos pelo mundo afora. Quantas e quantas vezes ouvimos de casais em final de relacionamento aquelas velhas frases “Ele(a) não era assim quando o(a) conheci!”, ou “Ele(a) me enganou!”, ou mesmo “Como deixei-me enganar dessa maneira?”. Mas será mesmo que sempre refletem a verdade? A resposta talvez deva passar por uma análise mais acurada sobre qual seja, efetivamente, o sentimento ali envolvido. E, inicialmente, me sirvo de Sigmund Freud, para quem “O amor que supomos sentir pelos outros nada mais é do que o amor que, deveras, sentimos por nós mesmos, projetado em outro ser.” A entender desse modo, então, seria o amor pelo outro mera autoadoração? Sob esse prisma sim, e a letra de Jorge Vercillo corrobora esse entendimento, ao decretar: “Face de Narciso por capricho se espelhou, mas se ela me olha assim é lindo, ali eu sei quem sou.” Chocante pra você? Vejamos. No começo da história amorosa estabelece-se um pacto de maneira implícita e inconsciente – frise-se, inconsciente -, onde cada parceiro interpreta seu papel de forma a atender às expectativas um do outro. Cada um representa o que o outro deseja que ele seja. Ora, dá para perceber, de pronto, que isso é um trabalho que demanda bastante esforço e que não se sustenta indefinidamente, uma vez que são dois egos convivendo, e não duas essências. Dá trabalho não ser o que se É! Cansa! Findo, então, o teatro, o que sobra é “o ego em estado natural, despido dos seus disfarces, com os sofrimentos que traz do passado e seu querer insatisfeito, que agora se transforma em raiva” (Eckart Tolle), por que o parceiro não corresponde mais ao objeto idealizado de outrora. “É que Narciso acha feio o que não é espelho.”, diz Caetano Veloso. E você pode se perguntar o por quê de tantos desencontros. Outra referência da MPB, Beto Guedes (em parceria com o saudoso Fernando Brant), nos dá uma pista: “O medo de amar é não arriscar, esperando que façam por nós o que é nosso dever: recusar o poder.” De que poder ele fala na canção? O poder sobre o outro, a manipulação sobre o objeto do seu amor. O medo aqui é o da nossa entrega – total e irrestrita – ao imponderável, entrega essa que nos deixa frágeis e vulneráveis, pois abrir mão das próprias defesas implica, invariavelmente, a possibilidade de ser machucado, de não ser correspondido, de ser rejeitado, de se decepcionar, enfim. E quantas vezes isso pode acontecer, de modo que vamos, aos poucos, criando cascas de proteção que mais se parecem com uma prisão? Essa “casca” vai cobrindo o Ser até que ele abandone a coragem e o arrojo para correr riscos de se entregar a um novo relacionamento. Daí esses tempos de Amores Líquidos de que tanto Zygmunt Bauman falava. O equívoco está, na verdade, em reverenciarmos as pessoas como meio de ressaltar nosso próprio eu, pois isso gera uma falsa percepção do outro, apego e obsessão, que não condiz com o que, verdadeiramente, chamamos de Amor. Amar independe de correspondência. O outro não existe para satisfazer nossas expectativas. O amor nada quer do outro, por que tem existência própria. Quem quer, quem deseja, quem necessita de correspondência é o ego. Não dá para amar apenas o que nos convém. Amar tem que ser por inteiro! Com suas dores e delícias! Roberto Freire não me deixa mentir: “Os amantes sabem que só se ama por inteiro, ou então o que estão fazendo não é amor, mas uma associação de interesses mútuos, um negócio. Além disso, quando se ama, não se está pensando em segurança, duração, controle, posse, pois isso corresponde à forma com que o autoritarismo capitalista familiar ou de Estado se expressa no plano pessoal e afetivo. Se sou um libertário, desejo que tanto eu quanto o meu parceiro vivamos o amor em liberdade, na emoção, no espaço e no tempo.” E eu me pergunto: será que a maioria de nós está preparada para amar verdadeiramente? Por que, no final das contas, “o medo de amar é o medo de ser livre” (Beto Guedes/ Fernando Brant). Daí por que Pondé afirma que “Amar é para os corajosos!”. Realmente! Amar e respeitar a individualidade do outro ainda que ele nos deixe de amar,…, sublimando toda a dor que é trazida com o abandono…é corajosamente lindo! Mais do que isso: é edificante! A letra de “Meu menino”, música de Ana Terra e Danilo Caymmi, imortalizada nas vozes de Milton Nascimento e Nana Caymmi, cai como uma luva pra ocasião: “ Se um dia você for embora, não pensa em mim que eu não te quero MEU; eu te quero SEU.” Taí o tal amor incondicional. Esse sim, o que podemos chamar de Amor, despojado de todos os quereres do euzinho egoísta e manipulador, tal qual o “louco querer” de Caetano, na música “Nosso estranho amor”… Pra intrigar ainda mais o leitor, trago outra passagem de Roberto Freire: “ Porque eu te amo, tu não precisas de mim. Porque tu me amas, eu não preciso de ti. No amor, jamais nos deixamos completar. Somos, um para o outro, deliciosamente desnecessários.” Obviamente que chegar a tal conclusão não é tarefa fácil, tendo sido obra de algumas noites mal dormidas, de solidão e de dores profundas no silêncio do meu quarto. Afinal, não é fácil ver morrer uma crença deturpada que estava tão arraigada… Cabe a mim, portanto, conduzir-me de maneira íntegra, rompendo com os jogos de manipulação que, ainda que inconscientemente, enxergam no outro apenas um objeto de satisfação pessoal. Esse caminho, no entanto, só pode ser trilhado por quem está disposto a enxergar-se por inteiro…, seu lado sombra e seu lado luz. E vou logo advertindo: isso dói. Mas depois que você faz a dura travessia tudo fica mais claro e menos difícil (não mais fácil!). Se eu acredito que esse Amor cantado por Caetano, Nana e Milton existe? Sem dúvida alguma! O Amor, quando acompanhado de transparência e do respeito por si mesmo e pelo outro, é capaz de tudo! E viva o Amor!! Um brinde a ele!!
Autoria: Adriana Abud
Autores citados: Freud, Eckart Tolle, Bouman, Jorge Vercillo, Caetano Veloso, Beto Guedes, Fernando Brant, Luiz Felipe Pondé, Roberto Freire, Ana Terra, Danilo Caymmi.
“no entanto, só pode ser trilhado por quem está disposto a enxergar-se por inteiro…”
Adriana,seu texto é de uma sensibilidade tamanha,tanto quanto o amor..parabéns
Waldir, no Projeto Omnisversa não falta afeição. E ela é fruto dos seus colaboradores – pessoas com uma visão reflexiva e paixão pelo saber e pelas artes, como Adriana e como você. Obrigado por seu comentário.