VIDA LÍQUIDA OU FIM “CERTO”?
“Estamos todos numa solidão e numa multidão ao mesmo tempo.” (Zygmunt Bauman)
O filósofo Zygmunt Bauman nos trouxe o conceito de Modernidade Líquida, ou seja, um mundo volátil que estaria a desorganizar as esferas da vida social (amor, cultura, trabalho, educação, …). “Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar.” (Zygmunt Bauman) Trata-se de um mundo de incertezas, onde o indivíduo moldará a sociedade à sua personalidade. Com isso surge toda uma fluidez, já que a definição do indivíduo dar-se-á pelo seu estilo de vida, pelo seu consumo, por sua forma de consumir. Outrossim, existe uma movimentação constante de cunho geográfico, conforme a capacidade econômica do indivíduo. E, finalmente, a competição econômica faz com que tudo que se considerava segurança seja imprevisível (trabalho, aposentadoria, …). Vê-se de cara que esse é o mundo ditado pela nova visão do capitalismo, pois tudo dependerá da capacidade econômico-financeira do indivíduo. “O capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento.” (Zygmunt Bauman) Estranho que alguns defensores dessa modernidade líquida se coloquem como críticos do capitalismo, quando ambos estão intrinsecamente ligados. Percebe-se que a modernidade líquida se caracteriza por ser fluida, movimentada e imprevisível. Essa modernidade líquida é o novo cenário imposto, sob uma pseudoliberdade individual, que na verdade depende do quanto você efetivamente possui e consome, impondo de forma geral uma vida líquida. A vida líquida basicamente representará uma atitude “racional” – eu diria egoísta, pela qual ninguém se compromete com coisa ou pessoa alguma. Portanto, achar que há uma liberdade tão ampla é uma falácia, assim como uma justificativa para que as pessoas não assumam responsabilidades, sejam respeitosas, tenham empatia, … O indivíduo se sente o umbigo do mundo e o resto que se dane. Esse comportamento explica o nível de egoísmo, solidão, irresponsabilidade, frustração, ansiedade e angústia que presenciamos hoje nas pessoas. Uma pseudoliberdade, dependente de condição econômica favorável, transforma os indivíduos em algozes dos outros e deles próprios. Na Revolução Francesa pelos riscos das individualizações dos conceitos de liberdade e igualdade, se mitigou a questão com o conceito de fraternidade. Na modernidade líquida, Bauman oferece por solução a construção da ética. “O sofrimento e os problemas de nossos dias têm, em todas as suas múltiplas formas e verdades, raízes planetárias que precisam de soluções planetárias.” (Bauman) Ora, a ética envolve o estudo das ações humanas e a capacidade de avaliar essas ações. Se levado em conta o entendimento daqueles que diferem ética (estudo universal) e moral (prática relacionada às regras de conduta local), me restam dúvidas se a solução dada por Bauman seja suficiente. A modernidade líquida justifica a fragilidade das instituições, a falta de pertencimento, a inexistência de uma identidade firme, as relações desajustadas, o amor oportunista, e, ainda, a incerteza como uma característica da vida, principalmente pelo cenário econômico (concorrência dos mercados e ao aumento da competitividade). Os conceitos, princípios e valores são absolutamente flexíveis e se adaptam ao meio onde estão inseridos. Chegamos a Sartre com a questão da angústia e desconforto nas situações de incerteza. Mas, o mais preocupante é que se faz crer que a força do individualismo traz a responsabilidade total do indivíduo pelos seus atos, quando a característica presente é de que o indivíduo se nega a assumir qualquer comprometimento (responsabilidade) para com os outros, às coisas ou a si mesmo. A meu ver, essa modernidade líquida expressa nada mais do que o controle do capital sobre as pessoas, em derrocada às instituições, às mídias tradicionais, e aos princípios e valores humanos, prometendo uma liberdade total, desde que você tenha capacidade de consumo e elevado padrão econômico. Você começa a entender as mídias sociais como a grande ferramenta do capitalismo com sua voz de consumo nos fantoches denominados “influencers”. “Na era da informação, a invisibilidade é equivalente à morte.” (Zygmunt Bauman) Ao refletir sobre isso, me deparo com a visão de Nietzsche sobre o último homem. Alguns dirão que há um equívoco, pois este seria o niilista passivo arquetípico, ou seja, cansado da vida, sem correr riscos e na busca apenas de conforto e segurança. Todavia, o indivíduo da modernidade líquida alega a liberdade plena, mas sub-repticiamente busca conforto e segurança na condição econômica de consumidor pleno, bem como, foge ao risco da interatividade comprometida com o próximo. O homem líquido é o homem solitário na multidão de tantos outros homens solitários. Tal qual Nietzsche pregava, vejo o homem líquido como aquele incapaz de construir e agir com base em um “ethos” (conjunto de traços e modos de comportamento que conformam o caráter ou a identidade de uma coletividade) autorrealizado, ou seja, o último homem. Esse último homem representa efetivamente o fim da civilização. Não por outra razão, nos deparamos hoje com o declínio daquilo que trouxe a evolução civilizatória e que acaba falsamente justificado pelo avanço tecnológico. Parece-me um caminho perigoso, mas que agrada muito ao capitalismo que, hoje, ganha mais força na realidade concreta, se valendo do mundo virtual, que é completamente líquido. Não vejo qualquer possibilidade para a vida boa das pessoas nesse cenário, mas apenas uma boa vida para alguns privilegiados e completamente descomprometidos seja com o próximo, a sustentabilidade, e a autopreservação da humanidade. “Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar.” (Zygmunt Bauman). Inclua-se nesse nada a vida humana; a perda das vidas se torna normal e aceitável ainda que fora das condições biológicas típicas. O homem já não questiona, ele consome o que é influenciado a comprar. “Esquecemos o amor, a amizade, os sentimentos, o trabalho bem-feito. O que se consome, o que se compra, são apenas sedativos morais que tranquilizam seus escrúpulos éticos.” (Zygmunt Bauman) Se você consome, não mais importa refletir, ter empatia, ser solidário, ser respeitoso, ou seja, aquilo que importa em comportamento moral e ético. Ocorre que Bauman reconhece que “nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem”. Voltando a Nietzsche, o último homem é o fim da civilização. O líquido vai nos fazer escorrer para o ralo.
Autoria: Fernando Sá
Autores citados: Zygmunt Bauman, Jean-Paul Sartre