VOCÊ É DONO DA SUA IDENTIDADE.
“O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato.” (João Cabral de Mello Neto)
Tratar de identidade não é simples. Poderíamos defini-la como um conjunto de características próprias e exclusivas com os quais se podem diferenciar pessoas, animais, plantas e objetos inanimados uns dos outros, quer diante do conjunto das diversidades, quer ante seus semelhantes mudando em função da reação social. E aqui já percebemos que a identidade tem uma relação bem direta como o meio social, ou seja, com hábitos, costumes e práticas. E esse meio social irá influenciar no tratamento do individuo e sua identidade mediante o Direito, que acompanha, ainda que lentamente, a evolução do meio social. Por isso, identidade é algo que será tratado de forma diferenciada pela História, Sociologia, Antropologia, Direito e Psicologia. Serão, portanto, múltiplas as definições e os pontos de vista (identidade individual ou coletiva, falsa ou verdadeira, presumida ou ideal, perdida ou resgatada). Mas, creio que a identidade, historicamente, e pelo conceito inicial apresentado, sempre derivou de como a sociedade e o Estado identificaram o indivíduo. Gertrude Stein, apesar de sua história, disse que “a única coisa que torna possível a identidade é a ausência de mudança”. Tenho certa dificuldade em entender essa frase no contexto de vida de quem a disse, mas há nitidamente um sinal dessa identificação externa para fins da identidade individual. Ou seja, a identidade partia da identificação por um terceiro, o que significa que o identificador sempre disse quem é o identificado, sua identidade. Podemos ver alguns avanços iniciais, com base legal, nessa mudança de identificar e consequentemente de identidade. Como exemplo temos o avanço feminino, quando a mulher passa a votar (1932). Lembre-se que até 1976, as mulheres, quando casadas se tornavam relativamente capazes, dependendo de ratificação dos maridos, os atos por elas praticados. Isso só se alterou quando se reconheceu a dissolução possível do vínculo matrimonial (lei do divórcio). A seguir vimos uma evolução com o movimento afro, quando afro-brasileiros passaram a reconhecer o valor de sua etnia, cultura, religião, estilo de roupas e cabelos, … Eles passam a demonstrar, proteger e impor suas identidades. Esse foi um grande passo, pois a identidade já se formava pela visão própria e não mais exclusivamente pelo olhar de terceiro. O indivíduo, então, passa a dizer quem é, independente do terceiro (sociedade ou Estado) ainda pretender dizer quem ele é. A sua identidade lhe pertence e não lhe é imposta. Em uma sociedade tradicional, burguesa e estratificada, essa mudança tem o efeito de colisão de meteoro. Mais modernamente, nos deparamos com uma mudança radical da caracterização da identidade, pois ela parte exclusivamente do indivíduo, que a impõe e exige que seja respeitada, generalizadamente. Mas, o mais interessante, a identidade pode ser transitória. A identidade se faz líquida. Já pouco vale a identificação da sociedade e do Estado para o indivíduo, que pode inclusive lê-la como sendo preconceituosa. Não há espaço para a exclusão por uma visão do meio social inerte. Hoje, as pessoas se colocam da forma que se veem e se sentem, independente do arquétipo que tenham por vestimenta, profissão, formação, religiosidade,… Elas passam a definir o pronome pessoal que lhes melhor define, o nome social que desejam ter, as formas familiares que lhes aprazem, … O amor-próprio se sobrepõe ao medo do julgamento social. É um mundo de maior liberdade, pois esta definição de identidade não é mais um grilhão, já que elas podem mudá-la, adaptá-la ou recriá-la. “Ninguém pode ser escravo de sua identidade: quando surge uma possibilidade de mudança é preciso mudar.” (Elliot Gould) A exclusão não é mais a possibilidade ou sanção do meio social com quem não aceita ser identificado por ele. E a lei acompanha esse processo evolutivo, protegendo o indivíduo na sua autoidentificação e definição de sua identidade. “Mas o que importa/o que pensam de mim?/Eu sou quem sou, /eu sou eu,/sou assim, /…” (Pedro Bandeira) Mas isso não fez o mundo mais fácil, seja sob o lado de quem se identifica, seja pelo lado de quem está acostumado pela identificação a partir do meio social. É um meio social novo, a partir de uma ruptura que exige entendimento, reflexão, respeito e, sobretudo, amor e bom senso. Existe um aprendizado a ser feito por ambos os lados. Não falo aqui de tolerância, mas de respeito e reconhecimento. A tolerância carrega em si uma certa indiferença, que não pode existir quando falamos de um meio social coeso, harmônico e evoluído. Desta vez, o processo foi inverso, pois o meio social precisa crescer com o indivíduo e não o contrário. Aprendamos juntos e respeitosamente! Tenhamos a identidade espiritual de que fala Proust: “O que reúne e atrai as pessoas não é a semelhança ou identidade de opiniões, senão a identidade de espírito, a mesma espiritualidade ou maneira de ser e entender a vida.”.
Autoria: Fernando Sá
Autores citados: João Cabral de Mello Neto, Gertrude Stein, Elliot Gould, Pedro Bandeira, Marcel Proust
Foto: Choo Yut Shing (Flickr)