Era uma noite escura, dessas em que tudo pode estar escondido e pode surpreender assustadoramente. Uma chuva fina – inadequada à cidade – molha a calçada de pedras portuguesas. Já não há como se espremer mais, na busca de um espaço de chão seco. A marquise é curta. A marquise mais acolhedora deixou de ser acessível com o advento de grades. Grades com o propósito de afastar pobres desabrigados, mais do que para garantir segurança patrimonial. A condição precária só é esquecida quando aquela dor corta o corpo, dizendo, em sentimento, que a fome está presente. Não bastasse o frio, a chuva e o medo, tudo está superado pela fome. Vítima? Já não há direito a tal designação. Afinal, não se trata de uma pessoa, mas algo ao qual as pessoas negam a visão. As pessoas, ao perceberem sua figura, cruzam o lado da calçada ou afastam o olhar. Assim, conseguem negar sua existência, sua realidade, sua humanidade, … Já não é pessoa, mas algo. Algo que atrapalha, um empecilho na calçada, um atentado à estética, um refugo da sociedade,…; e por esse meio ela é transmutada pela sociedade hostil, que a criminaliza pela miséria, pelo desabrigo e pela fome. Mesmo alguns donativos recebidos, não significam reconhecimento de uma situação, mas um paliativo para a culpa ou a busca de garantia do perdão celeste futuro. Todavia, resta sempre uma esperança, como agora. Não é um anjo que chega, mas um carro de onde saltam algumas pessoas, distribuindo agasalhos e sopa. Além de donativos, ou mais do que isso, elas distribuem sorrisos e atenção. E ela volta a se sentir gente. Sua humanidade parece resgatada. Ela acredita por algum tempo que faz jus à dignidade devida a qualquer ser humano. Ela teme que quando essas pessoas partirem, ela volte a ser algo, mais uma coisa descartável. O agradecimento pode ser por aquilo que não se sabe estar sendo oferecido, mais do que por aquilo que se está explicitamente oferecendo. Ela está tão agradecida, ainda que não saiba quem doou seus novos pertences ou aquela comida. Então, diante da indeterminação da origem, ela agradece a esse Deus, de quem, por vezes, duvida. Aquele resto de noite, ela se sentirá acolhida e querida. O sofrimento contínuo ficou para amanhã. Com o advento do novo dia, saberá sua nova tortura. ”O ser humano precisa mais de apreciação do que de pão”. (Madre Teresa de Calcutá)