.”Ela acreditava em anjos e, porque acreditava, eles existiam.” (Clarice Lispector)
Na noite chuvosa, de frio cortante pelo vento gélido, a marquise do banco pode ser a uma lápide de proteção, que abriga aqueles que são mortos-vivos para uma sociedade desumana. E sob ela está Maria das Dores, que deixou de ser Maria para ser só Das Dores. Um nome mais adequado a quem aos 12 anos vaga só pelas ruas, sem casa, escola, dignidade, cidadania … Também poderia ser só chamada “brasileira”. Mas, esta noite é mais difícil, quando o chão úmido e o frio assolam seu corpo frágil e quase raquítico. Ela se abraça com força em uma posição quase fetal. Ela tem esperança de que o vestido menor que seu tamanho a aqueça. Seus ossos parecem molhados e seus dentes descontrolados tilintam. Apesar do desconforto, ela mantém sua atenção aos riscos da noite, típicos para quem mora à rua. Nesse ambiente se vive com o medo da violência física e sexual, que Das Dores já conhece bem. Mas, seu maior medo é atiçarem fogo em seu corpo enquanto dorme. Não teme a morte, mas o sofrimento. Estranho, para quem sofrimento é sinônimo de vida. E nesse cenário de Dickens, ela houve passos. Alguém vem em sua direção, mas é uma sombra à luz fraca do poste alto. Quase tomada por desespero, Da Dores pede proteção a Deus; uma divindade a quem nunca foi apresentada. Ela lembra que nunca houve alguém que lhe ensinasse qualquer oração. Talvez por isso se sinta esquecida por Ele. De repente, uma mão estende um cobertor e uma pequena vasilha com sopa quente. Ela não sabe o que fazer. A ânsia de receber se confunde ao medo de ser comida envenenada. Há tantas histórias e fatos na vida da rua. Uma vida que parece só vagabundagem aos que tem casa e a quem falta empatia. Ela encara aquele senhor tão próximo. Será que aqueles olhos marejados que a miram poderiam ser maus? E uma voz embargada diz: “- Toma menina! Você está bem? Se cubra, pois está muito frio!” Esse som afastou um outro frio, aquele que crescia e tomava o coração Das Dores. O frio do desespero infinito, que faz com que nada importe. Pela primeira vez Das Dores se sente verdadeiramente a preocupação de alguém. Há uma preocupação diferente agora. Não são os comerciantes que a expulsam pela manhã, os policiais que a espantam, os transeuntes para quem é invisível, os outros moradores de rua que a aterrorizam. Pela primeira vez, Das Dores acredita que anjos existem e talvez ela tenha um anjo da guarda. Aquela noite findou diferente. Das Dores se acomodou, com o estômago cheio e quente, envolta no cobertor, agora seu, e dormiu. Nem mesmo o medo cotidiano perseverou. Ela até sonhou, pois passou a crer em anjos e que Deus olhava por ela também. Incrível como tão pouco pode fazer com que tanto sofrimento seja amenizado ainda que por curto tempo. Ninguém é perfeito. Ninguém é santo. Mas você pode ser um anjo para alguém. Pense nisso! Ajude alguém que sente frio!