“É a culpa, e não a fé, que remove montanhas.” (Sigmund Freud)
Eram quatro da tarde, quando Carlos acordou sobressaltado, buscando saber o avançado das horas. Após titubear por segundos, ele beijou delicadamente a tatuagem de um “F” negro no ombro que tanto lhe abraçara naquela tarde sorrateira. Se dirigiu ao banheiro e, envergonhado o suficiente para não se olhar o espelho, atirou-se ao banho. Esfregava o corpo com uma fúria fingida, na crença de que, mais que limpeza, obtivesse a retirada de qualquer sinal ou vestígio do prazer tido. Ao tomar a toalha, a cheirou. Havia um certo medo de que, ao secar-se, ela retornasse ao seu corpo o que água e sabonete supostamente haviam levado. Se vestiu apressadamente, todo atrapalhando ao calçar os sapatos. Tirou 3 notas de R$ 100,00 da carteira, as depositando sobre o criado mudo. Apreensão ao deixar o apartamento. Congelado diante da porta., Um medo de ser visto saindo dali ou de cruzar com alguém no corredor. A mesma sensação se repete antes de adentrar ao elevador, que, por sorte, estava vazio. Agora, mais uma batalha, passar pela portaria, onde, mais uma vez, abaixaria a cabeça em direção contrária ao porteiro. Mas, de soslaio, ele sempre percebia um pequeno sorriso vindo daquele homem. Um sorriso que valia por uma faca afiada adentrando seu ser. Um risco á sua existência advinha daquele sorriso. Um sorriso que dizia: eu sei, mas esse segredo é nosso. Já na calçada, em sua frenética fuga, Carlos prefere andar alguns passos até a esquina e ali pedir um “uber”. Está a salvo do olhar do porteiro, mas, agora, enfrentar o motorista. Será que aquele motorista desconfiaria dele? Já em locomoção, Carlos faz uma ligação. Maria Helena, sua esposa, atende e ele pergunta por ela e pelas crianças. Esse é seu portal entre os dois mundos em que vive. Depois dessa ligação, Carlos volta a se sentir o profissional de sucesso, dono de conceituado escritório e pai de família exemplar. Como sua mãe diria, um homem de família que deu certo. E certamente o motorista de nada mais desconfiaria. Já no escritório, Dr. Carlos ocupa sua confortável e espaçosa sala, onde cabe essa vida monótona e rotineira. A sala é adentrada por João Alberto, que volta a demandar uma decisão quanto á demissão de Pedro, a quem de forma escondida, chama de “bichinha do escritório”. Como sempre, a demanda vem acompanhada de uma piada homofóbica, e da justificativa da demissão como garantia de uma visão “limpa” e tradicional para o escritório. Carlos ri com a piada e tenta atrasar a decisão sobre a demissão. Acaba confrontado pelo sócio, que, em tom sarcástico, pergunta se ele também virou defensor de pervertidos. Carlos se desvencilha de João Alberto, que sai insatisfeito. Carlos se dirige à janela e olha a cidade. Mas ele só consegue pensar em Fabrício o único prazer que teve naquele dia. Aquele que verdadeiramente, lhe traz momentos de alegria e o tira de uma vida tediosa e infeliz. Seca os olhos e veste o paletó. A culpa faz um reboliço em sua alma. Tempo de ir para casa. Encontrar a família ajudará a esquecer quem ele realmente é. Acreditar que dessa vez desfará a culpa, que nunca de desfaz.