O RETORNO
“Os humanos não descansarão até estragarem a terra e destruírem os animais.” (Richard Adams)
Minha infância, em Cem-anahuac, foi determinante para minha formação, bem como para a presente aventura. Eu adorava ficar pelos arredores da casa buscando plantas e animais e analisando-os. Minha mãe, Chalchihuitlicue, sempre saía a me procurar e repetia: “- Cuatl, pare de brincar e vá já estudar! Mire-se em sua irmã, Iztociuatl!” Minha irmã era um modelo de aluna em resultados e comportamento. Mas, meu pai, Patecatl, vinha me salvar: “- Mulher, deixe Cuatl explorar sua curiosidade, assim surgem os grandes cientistas.”. Sempre achei que meu pai teria sido mais bem sucedido como cientista, apesar de seu sucesso como médico. E, assim, fui aprofundando minha curiosidade, e quanto mais entendia, mais queria entender. O tempo demarcado no “xiuhpohualli” corria. Já não usamos mais o calendário religioso (“tonalpohualli”), para descontentamento de minha avó. A biologia só poderia ser meu caminho natural. A chance de ser um cientista e me dedicar à botânica foi a ponte do prazer da infância com a realização profissional. Após alguns anos de atuação, algumas pesquisas de sucesso e dedicação na livre docência em Calmecac, surge o convite da minha vida: participar de uma missão ao planeta Chalchihuil, onde conduziria as pesquisas sobre a sua flora. Chalchihuil recebera esse nome em razão de suas lindas florestas de um verde magnífico como o jade. Esse convite era um presente de Huehueteotl – o mais velho dos velhos deuses. Nosso povo, há muito tempo, estivera em Chalchihuil, onde estabeleceu uma colônia. Diziam que era uma terra tão linda, que só poderia ter sido criada por Xochiquetzal – a deusa do amor e das flores. Ali, nosso povo construiu algumas “icpac tlamanacali” (pirâmides), que não sabemos se ainda estão lá. Na verdade, não sabemos da condição do planeta após o massacre do nosso povo. Parece que Mictlantecutli e Mictlanciuatl vieram do inferno subterrâneo, fazendo surgir um exército formado por “tlahuele” (loucos violentos), que, em um ato de monstruosidade massacraram tudo que havia sido construído e desenvolvido. Aliás, os tais seres humanos, naturais de Chalchihuil, seriam muito mais arrogantes e belicosos que inteligentes, pelos relatos dos poucos de nossos sobreviventes, que foram resgatados. Por isso, à despedida, minha mãe estava tão preocupada. Mas eu a tranquilizei: “- “Tene”, estou realizando um sonho. Quero seu orgulho e não sua tristeza.”. Iniciada a viagem, que hoje se faz de forma muito rápida e confortável, seguimos adentrando, após um par de horas, na Via Láctea, cruzando o “tonatiu”. Podia-se sentir o calor e luminosidade daquela pequena estrela de fogo. No segundo planeta (“omexochitl”) meu coração disparou. Ansioso, imaginava o que encontraríamos agora que chegávamos a Chalchihuil, o próximo planeta. Sobrevoamos Aztlán e seguimos em direção de onde fora Tenochtitlán. Do alto, víamos que pouco restara, mas me incomodavam as características bem distintas da vegetação, que já percebia diferente da forma descrita pelos antigos que sobreviveram ao massacre. O comandante encontrou um local adequado para pouso, e logo estávamos em terra. Antes de sairmos, recebemos instruções específicas. Só então foi esclarecido que a decisão pela realização da missão decorreu do fato de que já não mais existiam os tais seres humanos no planeta. Isso dera segurança de retornar a Chalchihuil, após tantos anos e acontecimentos históricos. Na verdade, os seres humanos ao agirem, levianamente, em detrimento à natureza do planeta, se dizimaram. Mas esse comportamento irresponsável foi a razão direta da evolução da vegetação que agora existia, tendo se adequado a um planeta de chuvas ácidas, altas temperaturas, pouca água e muita contaminação (no ar, na terra e nas águas). Nos deparamos com muitas espécies que adquiriram características de cactos, para retenção e pouca necessidade d’água, outras espécies passaram a ter caules quase que petrificados e folhas menos tenras e lisas, poucas flores e frutos, … Será muito importante entender como essa vegetação se multiplica com essas características e a falta de animais – nem mesmo insetos pudemos encontrar. Gostaria de estar mais livre, para me movimentar, mas o traje é exigência obrigatória pelo calor normal e chuvas ácidas inesperadas. Quetzalcoatl – nosso mais renomado cientista – chamou a todos, para o experimento de sua última invenção, que seria um dos marcos dessa missão. O equipamento denominado “ehecatl”, em homenagem ao deus do vento, seria capaz de apresentar em sua tela um resumo histórico, por imagem, da região em que estava posicionado, em um raio de 200 “curdas”, pelo período que fosse definido. Com toda a pompa iniciou-se o teste, sendo a imagem da tela do equipamento repassada a um holograma gigantesco, que poderia ser visto por todos os presentes. De uma certa forma, ainda que bem-sucedida, a experiência atingiu fim distinto, pois mais que o feito do equipamento, os presentes ficaram hipnotizados pelas cenas de degradação de um cenário tão lindo pelos seres humanos, gerando inclusive a destruição de todos eles e dos demais animais. Todos choramos, tal qual os sobreviventes do massacre ocorrido no passado, quando resgatados. Tudo ainda existe de forma diferente e, provavelmente, se aperfeiçoará, mas talvez nunca venha a ser tão lindo quanto já foi. Olhei para o céu e vi Metzli, que ainda manda seus raios lunares tristes por tudo que testemunhou ser feito com Chalchihuil.
Autoria: Fernando Sá
Autor citado: Richard Adams
Foto: flickr.com
Leandro Neumann Ciuffo