“A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo.” (Fernando Pessoa)
O homem é um ser gregário, mas, como dizia Schopenhauer, “solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais”. Vivendo à pandemia, me deparei com uma certa perplexidade diante da dificuldade de algumas pessoas em manter isolamento social. Falo aqui daquelas que não estavam compelidas às atividades externas por força de trabalho. Logo em março de 2020, entrei em “homeoffice”, e adotei um procedimento de cuidado pessoal. Visto que moro só, estabeleci a permanência em casa com uma saída semanal, para fins de mercado e farmácia. Minha vida sempre foi marcada por jantares e almoços com amigos, idas semanais a teatro e cinema, frequentes cafés, além de eventuais shows, boates e festas. De repente restavam-me contatos telefônicos e vídeochamadas, inclusive com minha terapeuta. E assim foram os 6 primeiros meses. Consegui suportar bem, tanto que minha terapeuta me deu alta no meio do isolamento. Supunha que o meu bom convívio com o isolamento defluía da minha condição de morar só, ou seja, estar habituado a uma certa solidão. Mas comecei a perceber que não era só isso. E me chamava a atenção pessoas que, mesmo morando com outras, falavam da necessidade de ir ao shopping, estar na rua, participar de baladas,… Um amigo levantava a tese de que, principalmente no Rio de Janeiro, onde as pessoas têm mais vida na rua que em casa, elas não tinham moradias cômodas, o que seria a razão inclusive do aumento de reformas e aquisições de bens para as casas. Todavia, minha percepção era de que havia algo mais. Me lembrava de que Blaise Pascal falava sobre uma tragédia humana cuja fonte estava na incapacidade do homem permanecer sozinho no seu quarto. Ao me deparar com o livro “Sabedoria do deserto” (Anselm Grun), onde, em uma das parábolas, Pai Arsênio – um dos monges (“abbas”) do deserto – diz: “Vai e come, bebe e dorme, e não trabalhes. Só não abandone seu “kellion”!”, uma luz me veio. O Pai Maior diz ao monge iniciante que ele poderia, na sua ascese, falhar com o jejum e o trabalho, mas deveria respeitar o isolamento de sua cela. Por quê? A importância do isolamento está em, estando só, a pessoa se prontificar a responder perguntas como: Está tudo certo comigo? Minha vida está certa? O que me move verdadeiramente? O que pretendo com a minha vida? Que rastro pretendo deixar demarcado nesse mundo? “Só aquele que suporta sua própria pessoa, só quem se confronta com a sua verdade … consegue viver de forma serena, em liberdade e honestidade interiores.” (Anselm Grün). Ocorre que as pessoas têm necessidade e possibilidades de fuga desse autoconhecimento, pois ele gera a necessidade de revisão e realinhamento pessoal. A melhor forma de fuga? A distração! A dificuldade de lidar com os desafios da vida, como a própria pandemia ou o enfrentamento daquelas perguntas, gera a fuga para sentimentos eufóricos, que muitas vezes estão representados na necessidade desmedida de distração. Tudo que é desmedido não é virtuoso, basta lembrarmos do justo meio mencionado por Aristóteles e São Tomás de Aquino, e, também, na Regra de São Bento. Nesse caminho, entendo melhor a dificuldade de certas pessoas frente ao isolamento social, pois, na verdade, essa euforia está no comportamento usual, independente da pandemia, de fuga do estar consigo mesmas. Mas ressalte-se que, alguns, mesmo em isolamento, seja por racionalidade científica ou seja por pavor pandêmico, vivem essa frenética fuga da autoconvivência, e percebemos isso pelas centenas de postagens e mensagens diárias nas redes sociais de certas pessoas. Há uma clara busca de distração eufórica. Celular e internet são muito mais ferramentas negativas de convivência do que de agregação de pessoas. Quando Lou Andreas-Salomé fala sobre amor e isolamento (“Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento, cada vez mais intenso e profundo.“) me parece que, principalmente, ela trata do amor-próprio que se origina do autoconhecimento e da autoconvivência. Infelizmente, alguns confundem amor-próprio com vaidade. Não há vida boa quando se foge do autoconhecimento. Os gregos possuem duas palavras para preocupação (“merimna” – preocupação aflitiva, e “meletao” – preocupação confiante). Precisamos dessa preocupação confiante de que nos autoconhecendo podemos estabelecer um caminho melhor e, consequentemente, vivermos uma vida boa.
Autoria: Fernando Sá
Autores citados: Fernando Pessoa, Schopenhauer, Blaise Pascal, Anselm Grün, Aristóteles, São Tomás de Aquino, São Bento, Lou Andreas-Salomé