AUTOCONHECIMENTO PARA A VIDA BOA
“A filosofia busca tornar a existência transparente a ela mesma.” (Karl Jaspers)
Por vezes olhamos a diversidade sem a percepção de que, nos detalhes, há mais coisas em comum que diferenciações. Concordo com a Monja Coen quando ela diz que “culturas diferentes ensinam a nos manifestar de formas diferentes; mas se observarmos em profundidade, com atenção, poderemos nos reconhecer em todos e em cada um”. O autoconhecimento é uma necessidade para o alcance da sabedoria quanto à própria existência. Esse autoconhecimento está no desafio posto em diversas religiões e no próprio racionalismo, ateu ou não. A sua busca pode se dar com foco na fé, na filosofia, na psicologia ou na racionalidade pura. E, aí, começamos a entender como pontos de vista aparentemente diversos estão no lugar comum. O zen-budismo fala no despertar, no sair de si (ir além do seu eu menor), para que todos possam ficar bem. O olhar interior é olhar além de si e chegar ao próximo. Pura ética! Ou seja, estamos falando de empatia e compaixão na verdadeira ótica cristã. Buda é todo aquele que despertou, percebeu-se em relação à necessidade com o cuidado respeitoso e terno de todas as relações. Há uma passagem sobre o Buda Histórico em que, na sétima noite, o ser dual se apresenta e lhe diz que agora ele seria, pelo despertar, o ser acima dos demais. E, então, Buda coloca as mãos sobre a terra e diz: “- A terra é minha testemunha.”. Ele negava assim a ganância e, no despertar, reconhece a importância da humildade (terra, húmus, humano, humildade). Essa visão da busca, no interior, com a negativa dos fatores externos, para obtenção do autoconhecimento para despertar, se aproxima muito da base da filosofia estoica de origem grega. Para os estóicos, a humildade, a simplicidade e a ética eram os requisitos da vida boa. Tudo isso se obtinha a partir do conhecimento de si mesmo e do controle dos fatores internos, sendo os fatores externos alijados, pois fora do controle do indivíduo. Segundo os filósofos estóicos, a tarefa do ser humano é cumprir o desafio de descobrir seu eu verdadeiro (a região sagrada do “autos” – eu-mesmo, si-mesmo). O Manual de Epicteto dá excelentes lições sobre o enfrentamento desse desafio, gerando uma preocupação marcante com a ética. Os estóicos tiveram uma importante influência no judaísmo, quando este passou a ter profundo contato com outras culturas. Principalmente, percebe-se isso no Livro do Eclesiastes (pensador, pregador), que teria sido escrito pelo Rei Salomão e reeditado em torno do século III a.C. O livro, que compõe o Velho Testamento, explora o problema do sentido da vida, a analisando e o mundo à sua volta, mostrando a inutilidade de muitas das coisas em que as pessoas confiam. Um livro que une a sabedoria judaica à filosofia grega, para melhor entendimento e vivência da existência humana. Alí está o foco no centro da pessoa, onde está o Deus único dos judeus. Ou seja, conhecer a si mesmo é conhecer a Deus, tudo aquilo que está fora do controle dessa relação indivíduo-Deus em nada agrega à existência verdadeira. Essa visão vai ser de grande importância ao cristianismo e sua expansão na Antiguidade. Não podemos esquecer que São Lucas (evangelista) e São Paulo (apóstolo) tinham proximidade e vivência na filosofia grega. Por isso, o primeiro narra que, após a ressurreição Jesus diz: “Eu sou eu mesmo” (“Ego eimi autos”). Ele se encontra em Si-mesmo. Ele se vive no autoconhecimento. Ele está desperto. Quem mais estaria na região do eu-sagrado (“autos”) que o filho de Deus? Ou seja, se afasta o ego (eu egoístico) e se encontra o “autos” (o si-mesmo puro e livre). Não por outra razão, São Paulo diz: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim.”. Ele encontrara o eu-sagrado. Aliás, a máxima da filosofia grega era “Conheça a si mesmo.”. De repente, começamos a perceber o quanto de comum podemos ter apesar de falarmos em budismo, filosofia clássica, judaísmo e cristianismo. Isso traria dúvidas quanto a fé? Ainda que o fosse, Anselm Grun ensina que “a dúvida me ensina a formular a minha fé de forma nova, de modo que eu possa compreendê-la e aceitá-la”. Quando não se tem a dúvida, quando só se tem certeza da fé, vive-se o fanatismo. São Paulo deixa de ser fariseu quando, ao duvidar da certeza que tinha, reconhece Cristo. Lohfink acredita que o Livro do Eclesiastes teria uma ligação direta com a filosofia existencial moderna criada por Kierkegaard, mas que adquire contornos próprios com racionalistas, alguns ateus, como Camus, Sartre, Jaspers e Heidegger. Passa a existir uma preocupação maior com a existência do que com o ser real e verdadeiro, mas a busca do autoconhecimento, o eu-interior continua a ser o foco, para entendimento da existência. O desafio do autoconhecimento é claro quando Sartre fala: “Para saber uma verdade qualquer a meu respeito, é preciso que eu passe pelo outro.”. Da mesma forma, Heiddeger, ao falar da existência, considera que o homem se torna ser enquanto compreensão de si mesmo. No mundo moderno, vemos que a psicologia avançou sobre a filosofia no alcance das pessoas e, então não custa lembrar Jung, para quem o ser humano só consegue desdobrar o seu si-mesmo verdadeiro, quando vivencia o divino em si mesmo. Não se mata o ego, mas ele é afastado para que, se tendo autoconhecimento, assim, se seja livre, autêntico e autárquico. O autoconhecimento, portanto, traz a liberdade e a felicidade, que são os elementos primordiais a uma vida boa. Portanto, não importa se o seu caminho é filosófico, religioso ou terapêutico, importa que você encare o desafio da busca do eu-interior, do si-mesmo, do “autos”, do autoconhecimento, para o alcance da vida boa. Vale o conselho da Monja Coen: “Sem pressa, mas com urgência, desperte!”. E como se autoconhecer significa não mais girar em torno de si mesmo, haverá o entendimento da interdependência, do intersomos, … A vida boa alcançada ajudará no alcance da vida boa pelos demais. Afinal, somos todos um só.
Autoria: Fernando Sá
Autores citados: Karl Jaspers, Monja Coen, Buda, Epíteto, São Lucas, São Paulo, Anselm Grun, Norbert Lohfink, Kierkegaard, Albert Camus, Jean-Paul Sartre, Heidegger
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