“A grande tragédia do nosso tempo é que não ouvimos nossas consciências. Não dizemos o que pensamos. Sentimos algo e fazemos diferente.” (Vassili Grossman)
Muito jovem, fui admitido em uma grande empresa, onde encontrei um sem-número de profissionais altamente gabaritados e pelos quais desenvolvi profundo respeito. Com humildade, busquei aprender com eles, e grande parte deles eram generosos em oferecer seus conhecimentos e ensinamentos. Alguns deles ficaram na minha vida profissional e outros adentraram também à minha vida pessoal, não necessariamente em uma relação de convivência frequente. Um desses homens, que me ajudou em momentos difíceis e sempre foi muito generoso em palavras e ações para comigo, se tornou um dos meus mentores em literatura. Aliás, também foi sempre um bom crítico, e ainda me lembro quando me disse: “- Você é brilhante, mas lhe falta o desenvolvimento de inteligência emocional!” Incorporei e aprendi! “Sê humilde para evitar o orgulho, mas voa alto para alcançar a sabedoria.” (Santo Agostinho) Visto ele ser um homem muito culto, de grande capacidade intelectual e leitor voraz, nunca faltaram boas dicas literárias. Mas, além das dicas, havia livros como presentes. Certa manhã – ele já aposentado – fomos tomar café na tradicional Confeitaria Cavé, no Centro do Rio de Janeiro. Eis que chega ele com alguns livros e uma garrafa de vinho, lindamente embrulhada pela esposa, como presentes. Dentre esses livros estava: “Vida e Destino” de Vassili Grossman. E essa foi uma leitura que me marcou e marcará para sempre. “A leitura engrandece a alma.” (Voltaire) O livro não é somente uma das obras-primas da literatura russa do século XX, trata-se de um relato tão autêntico, verdadeiro e reflexivo, que, por pouco não desapareceu nos subterrâneos da KGB. Sua publicação se deu em razão de amigos de Grossman, já na década de 80. O autor tinha origem judia e, apesar de apoiar o regime comunista e ser protegido de Gorki, isso não impediu que ele sofresse as consequências por mostrar a bestialidade que reinava em ambos os lados em luta, na II Guerra Mundial. Sua obra é comparável à de Leon Tolstói (Guerra e paz). Como correspondente no “front” para o jornal militar “Krasnaia zvezda” (Estrela vermelha), ele vivenciou a libertação de prisioneiros nos campos de extermínio nazistas de Majdanek e Treblinka. Grossman relata a mudança de tática nazista ao adentrar à Rússia, quando era mais fácil a execução coletiva que a criação de campos de concentração. A mãe de Grossman foi abatida em uma delas, em uma pequena aldeia russa. Seu trabalho serviu de testemunho nos tribunais de Nuremberg e lembro, ainda com arrepios, a leitura do relato sobre Treblinka, que me fazia parar a cada página e fazer uma oração diante da visão da maldade humana. Mas o livro, ou sua história, descortina também a verdade por trás das intenções de Stálin e suas práticas de “governo” (ondas de migração forçada, deportação de grandes populações para regiões desoladas, coletivização forçada das propriedades agrícolas, com grande violência, desabilitações históricas); demonstram outros atos repugnantes pela ação humana. Seriam humanas mesmo? Aliás, isso me transportou a outro livro (“Staline au pouvoir”, de Abdurakhman Avtorkhanov) da época dos estudos da língua francesa. A profundidade do entendimento da natureza humana a partir do fato histórico: talvez aí esteja a minha grande experiência literária com essa obra, pois a reflexão extrapola o histórico, para alcançar a filosofia, a sociologia, a política e a religiosidade. Sobretudo, trata-se de uma obra que permite profundas reflexões sobre empatia e compaixão. “É preciso ter empatia para perceber que não está sozinho no mundo. É preciso ter compaixão para enxergar no outro a dor que sentes. É preciso ter amor para não sucumbir a tanto ódio e indiferença.” (Tico Santa Cruz) Nunca esquecerei um relato de Grossman que expressa exatamente minha sensação diante de fotos dos campos de concentração: “E os filhos dos camponeses! Alguma vez viu, nos jornais, as fotografias das crianças dos campos de concentração alemães? Eram exatamente como estas, as suas cabeças eram bolas enormes em cima de pequenos pescoços, como se fossem cegonhas, vendo-se cada osso dos braços e das pernas a salientar-se por debaixo da pele, e todo o esqueleto a sobressair na pele, qual gaze amarela. E os rostos das crianças estavam envelhecidos e atormentados, como se tivessem setenta anos de idade. E na Primavera já nem sequer tinham rosto. Em vez disso, tinham cabeças semelhantes a pássaros com bicos, ou cabeças de rã – lábios finos e compridos – alguns assemelhando-se a peixes, de boca aberta. Rostos não humanos!“ Mesmo nas experiências literárias cheias de dor e sofreguidão há aprendizado e crescimento.
Autor: Fernando Sá
Autores citados: Vassili Grossman, Santo Agostinho, Voltaire, Leon Tólstoi, Abdurakhman Avtorkhanov, Tico Santa Cruz
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Michele Spiller