Dizem que o mundo acorda com o raiar do sol. Na verdade, Paulo tem a rotina de acordar antes do mundo! Aliás, não só ele, mas também uma multidão de pessoas, que, indignamente, se espremem dentro do transporte coletivo para o trabalho. Fato que pouco importa quando as autoridades se valem de carros de luxo guiados por motoristas ou mesmo de helicópteros nos seus dias a dias. Alguns até ousam dizer que isso é cansativo. Paulo é um desses brasileiros que, apesar de considerados inferiores pela condição de trabalhador, consegue ser polivalente: pedreiro, garçom, porteiro, guardador, vigia, … A pandemia fez de Paulo alguém ainda mais multitarefas, pois, no restaurante em que trabalha, por força da redução de empregados, ele vai de faxineiro a preparador dos ingredientes a serem utilizados pelo chefe e subchefe na cozinha. Talvez os clientes do restaurante não gostassem de saber disso. Não é a primeira vez que Paulo tem este patrão. Paulo fora vigia em empresa anterior, mas o patrão achou melhor falir sem pagar fornecedores e empregados, para então abrir este restaurante no nome da esposa. Paulo continua recebendo um salário indigno, mas que lhe é necessário. O lucro do patrão é enorme. Os jantares e almoços dos clientes custam em média mais que seu salário. Talvez por isso, todos os empregados do restaurante morem em comunidades ou favelas. Mas Paulo acredita, ingenuamente, que o patrão está mais humano. Afinal, agora – na pandemia, o patrão está preocupado em não fechar o restaurante para que os empregados não passem fome. O patrão diz que sofreu ao demitir empregados. Se tivesse tido a chance de estudar, Paulo entenderia que o patrão não se humanizou, sendo só um hipócrita. Paulo, ao menos, tem a chance de fazer uma refeição no restaurante, que não envolve – é claro! – os ingredientes nem aqueles pratos do cardápio cujos nomes ele não sabe pronunciar. “- OK, o que fazer se Deus quer assim?” Paulo vive tenso e preocupado, tem medo da doença e de passá-la à sua família. Mas precisa trabalhar agora, já que é a única renda da casa. A mulher foi dispensada e não consegue nem fazer faxinas como diarista. Os filhos precisam comer! A mulher de Paulo não conseguiu auxílio emergencial, mas o filho do patrão conseguiu. Paulo simplesmente não entende. Mas Paulo também vive a dificuldade de entender como se proteger. As informações que Paulo obtém pela TV o confundem. Médicos e jornalistas dizem que deve usar máscara, não se aglomerar e se vacinar. Mas outras autoridades lhe dão um exemplo diferente sugerindo que deve trabalhar, se aglomerar e não usar máscara. Pensou em comprar remédio preventivo, mas não bastasse a confusão do que usar, não sobra dinheiro para tais medicamentos. Todo dia, Paulo reza, não mais para a vida melhorar, mas para que viva ele e sua família sem a doença. Ele tem amigos, vizinhos, colegas, parentes com histórias tristes de falta de atendimento, de mortes, de enterros sem velórios ou despedidas, … Mas é uma guerra e ele soube que não pode ser fraco; a doença é só uma “gripezinha”; e afinal todos morrem um dia. “- Mas são tantos mortos?” Não importa! Há que ser forte, não deve ficar chorando e com esse “mimimi”. Paulo se pergunta se não está sendo mau se for frio e indiferente sobre esses mortos e as dores de quem os perdeu. Paulo não quer ser um monstro! Não! Sempre tentou ser bom filho, bom pai, bom marido, bom empregado, bom amigo,… Paulo é só mais um brasileiro trabalhador, indignamente tratado, manipulado, … Ele já até se acostumou com essa situação. O que Paulo não entende é porque, agora, exigem que ele não tenha um bom coração.