“A igualdade pode ser um direito, mas não há poder sobre a Terra capaz de a tornar um fato.” (Honoré de Balzac)
Ofegante, Nego Fumaça se levantou do colchão rasteiro ao chão e, arrastando os pés, cruzou o cômodo. Na parede de reboco caído, onde uma bica sobre um balde servia como pia e tanque, Nego Fumaça se deparou com a própria imagem em um pedaço de espelho amarrado com arame, em um prego enferrujado. Em momento de ânsia pela falta de oxigênio, ele lembrou que tinha nome: João. O nome de batismo era mais uma dessas peças perdidas na memória, como a imagem do menino que cedo conheceu o trabalho. Sua primeira ferramenta: uma lata de 20kg (daqueles em que se vendia banha), com a tampa retirada a abridor de latas e uma alça malfeita de madeira. A lata cheia d´água tinha quase seu peso e lhe servia para, por moedas, lavar carros estacionados contra o meio-fio da rua onde nunca poderia morar. Uma época em que Passat, Opala, Maverick e Landau eram carrões. Nego Fumaça, cada vez mais ofegante, dá alguns passos e se senta no banquinho de madeira, que fora barato por nascer cambeta. E ele se recorda de que um dia fora esbelto, atlético, …; fizera até sucesso com as moças do morro. Aliás, assim surgiu sua amada Dolores. Também na adolescência surgiu o apelido que trouxera esquecimento ao nome de batismo. Na hora da confusão, ele sumia feito fumaça. Dolores lhe deu dois filhos, cujos destinos ele tolamente acreditava seriam melhores que o seu. Esperança! Palavra vazia para quem só tem a si para fazer seu caminho. Havia trabalho árduo, pouco salário e muitas privações. Ria quando no caminho para casa, via um povo bem vestido, tomando cerveja, empunhando bandeiras e dizendo que todos eram iguais. Iguais a quem? Ainda tumultuavam seu duro retorno ao barraco feito de várias baldeações, após um dia massacrante de trabalho. E, ao chegar no pé do morro, ouvia, por indiscreto alto-falante, a pregação no templo sobre todos serem feitos à semelhança de Deus e, portanto, iguais e irmãos. Só havia igualdade na aguardente da birosca, antes de escalar o morro. A aguardente barata que afastava a dor do dia duro de trabalho, que submergia as humilhações diurnas e que o entorpecia, para não ter clarividência da repetição da miséria e penúria presentes em seu barraco. Esperança?! Repetia sua infância quando, amontoado com os irmãos em um cômodo e sôfrego de fome, ouvia a mãe dizer: “- Deus sabe o que faz!” Não é possível que Deus lhe fosse semelhante, quando, agora, percebia a pele seca e cheia de sulcos, uma bocarra de poucos dentes, um cabelo desalinhado, olhos ensanguentados, … e essa tosse pelo ar escasso. Por isso, ele odiava padres, pastores, religiosos,…; aquela conversinha de ser filho de Deus e igual entrava pelo ouvido mas não combinava com o que os olhos testemunhavam. Da mesma forma, desprezava os políticos e seus seguidores com suas ladainhas de igualdade e melhoria. Após a eleição, só queriam saber de privilégios a si. Até fingia apoiá-los, pois, afinal, rendia uma aguardente. Duas raças iguais na mentira do amor ao próximo, mas com mais amor a si e aos seus. Cada vez mais ofegante, Nego Fumaça lembrou sua solidão. Ressuscitou a triste recordação da perda de Dolores. Ela caíra doente! Acabou no SUS! O SUS é uma roleta onde as maiores apostas envolvem não ser atendido, morrer na maca ou morrer por falta de infraestrutura básica. Obviamente Dolores não ganhou na menor aposta: sobreviver. No “jogo de porrinha” da vida, ele sempre perdeu! Seu filho acreditou que, para ser alguém, precisava ter e consumir muitas coisas, para isso foi ao furto, roubo e drogas, … prisão. Sua filha era doméstica, em uma época em que essas trabalhadoras não tinham direitos trabalhistas e, por vezes, possuíam o dever extra de iniciar sexualmente os filhos do patrão. Ela optou por – humilhação – fazer mais dinheiro na prostituição. Aí a maior dor de Nego Fumaça: o banimento da filha. Ela sumiu no mundo para nunca mais! Essa dor era tão grande, que foi o único momento em que ele achou suportável a asfixia presente. Melhor voltar para o colchão roto. Se sua infância foi de segunda categoria e sua vida também, por que a pandemia lhe pouparia a vida? Nem sabia se acreditava nos médicos ou nas autoridades sobre máscaras e remédios, ou a quem obedecia. Descer o morro na dificuldade da velhice e se prostrar na fila do posto de saúde por uma vacina? Mas eram tantas coisas ditas a favor e contra a vacina, que nem sabia se valeria a pena. Também nunca teve sucesso na vida, para ter carro e ir ao “drive thru” de vacinação. Não! A pandemia não o pouparia. Mais óbvio lhe daria a pior morte: afogar-se no seco. Nego Fumaça ficou ali no colchão: sofrendo, tendo espasmos, olhos arregalando, … E nesse fim, a única certeza: ele nunca foi igual a todos, seja no tratamento por Deus, pela lei ou pelos homens. … Só não sabia que, na verdade, ele é igual a milhões de brasileiros tidos e tratados como seres de segunda classe pelas autoridades e pela sociedade. Na morte, faltou o ar; na vida faltou dignidade!
blogue fantástico e também impressionante.
Na verdade, eu gostaria torneira pia de cozinha ouro
graças, por nos dar melhores detalhes.
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