RESPONSABILIDADE SOCIAL. UM PROCESSO DE DESFIGURAÇÃO.
“Nada é pior que o orgulho dissimulado atrás da máscara de asno.” (EM Cioran)
Fala-se em responsabilidade social como um marketing positivo para empresas e para o próprio poder público, onde o indivíduo tem um papel de espectador. Me parece que, por aí, já começa tudo errado. Inicialmente, sob a ótica do indivíduo, a responsabilidade social é uma consciência necessária que afeta seu ambiente de vida e o seu próprio ser. Vivemos um tempo de egocentrismo doentio, no qual as pessoas acreditam que podem ser felizes individualmente, o tempo todo, e sendo essa felicidade responsabilidade dos outros, sem nenhuma ação própria. Os seres assim gerados e viventes tendem a ser mimados, frustrados e egoístas. Como bem diz Pondé, tratam-se de pessoas sem capacidade de ter ou receber afeto. Em complemento, podemos lembrar Luiz Antônio Simas ao lecionar que “como ninguém é capaz de atingir essa tal felicidade de shopping center que é vendida por aí, formamos aos montes um bando de depressivos, uns sujeitos infantilizados que não conseguem lidar com o fracasso e se entorpecem de remédios … a expectativa da felicidade é uma fonte poderosa de angústias e depressões”. Então sob a ótica da felicidade, também precisamos a visão do coletivo. A felicidade comum também se torna parte da responsabilidade social. Mas, sobretudo essa responsabilidade social individual depende do afeto, que anda em desuso, sob a tônica pragmática. Anselm Grün ensina que a palavra alemã para “bom” (“gut”) origina-se do conceito de encaixar, caber (“zusammenfügen”, “zupassen”). E ele explica: “Ela significa, portanto, que uma pessoa cabe bem em uma comunidade.”. A origem do termo, a partir de conceitos ligados à construção, mostra que ser bom significa ser parte da sustentação do muro, que é a comunidade. Aliás, Jesus Cristo falara sobre isso ao mencionar a pedra angular (pedra de esquina). Ele foi a pedra escolhida por Deus para edificar a Igreja, pois, na pedra angular, para a construção de um edifício, está a base sólida necessária para se conseguir alcançar a altura programada, sem cair. Conclui-se, então, que há uma necessidade de recuperação do afeto, para que as pessoas, entendendo os seus papéis, enquanto pedras angulares, sejam parte na construção de uma sociedade melhor. Essa é a consciência da responsabilidade social individual, que anda perdida neste país. Existe um orgulho, uma arrogância, uma presunção e uma vaidade na formação do coletivo, que impedem o indivíduo de viver uma vida boa, em comum ou individualmente. O indivíduo passa o tempo, egocentricamente, a empavoar-se! Quanto ao poder público, não há que se falar em consciência sobre a responsabilidade social, porquanto este é o dever inicial e supremo do Estado. Acredita-se, hoje, que o Estado existe para ajudar aos privilegiados e, marginalmente, oferecer migalhas aos excluídos. Essa não é, tão-somente, uma distorção moral, mas, principalmente, uma distorção histórica. O Estado foi criado para organizar e garantir o mínimo à sociedade, por ser ela que o mantém com seus tributos e sob um comando exercido por todos mediante o voto. E assim, o Estado é definido em Constituições (leis maiores) que tratam exatamente, dentre outros assuntos, das garantias fundamentais, dos direitos sociais e políticos, serviços públicos e da ordem econômica. O Estado, portanto, só cumpre seu papel quando atende a essa responsabilidade social de cunho político (constitucionalmente prevista). Por isso, o pai do Princípio da Separação dos Poderes (Montesquieu), dizia que: “Quando vou a um país, não examino se há boas leis, mas se as que lá existem são executadas, pois boas leis há por toda a parte.”. E, diante do que vemos em termos de corrupção, impunidade, ineficiência, … percebe-se claramente que inexiste por parte do Estado Brasileiro o cumprimento deste dever original, que é a responsabilidade social político-administrativa. O mais grave, talvez seja, a falta de perspectiva para mudança desta situação, porquanto, nas eleições, tem ocorrido uma ineficiência na representatividade por pessoas que entendam e efetivamente se comprometam com essa responsabilidade social político-administrativa. O imperador Marco Aurélio, em suas “Meditações”, ao reportar-se a Antonino – seu pai adotivo e considerado o melhor Imperador Romano pelos historiadores, diz: “…; no que se refere a estas [coisas públicas], era sensato e moderado na realização de espetáculos e na organização de obras, bem como no compartilhar generoso com o povo e em outras coisas desse gênero. … agia mais em função das necessidades do que da glória que pudesse resultar para si de suas ações.”. Por outro lado, há a necessidade da responsabilidade social dos agentes econômicos. A ordem econômica adotada permite que surjam realizadores de atividades econômicas, que, remunerados e mediante lucro, assumam determinados riscos. Esse ganho permitido aos agentes econômicos se dá sobre a sociedade, onde estão seus clientes, o que faz com que tenham uma responsabilidade para com esta sociedade. Trata-se aqui, da responsabilidade social empresarial. Vemos diversas empresas que alegam cumprir tal responsabilidade oferecendo espaços para segmentos elitizados, na forma de mecenas, ou se apresentando como modelos de caridade. Caridade não é responsabilidade, mas opção individual de ajudar, tal qual o mecenato. Podemos por analogia citar Rousseau: “ A fingida caridade do rico não passa, da sua parte de mais um luxo; ele alimenta os pobres como cães e cavalos.”. Em parte, essa falta de visão e conceito da integração da empresa na sociedade em que atua, em longo prazo, pode significar a própria morte dessa empresa. Lembro Silvio Almeida, que ao tratar de racismo estrutural, mostra que, em uma sociedade onde 55% da população é negra, a empresa que não atua para inclusão do negro na economia, não quer estabilidade econômica e vida longa. A responsabilidade social da empresa deve ser objeto inicial de previsão em sua criação, pois está lhe sendo permitido gerar lucro sobre e a partir dessa sociedade. Não se trata de caridade ou benevolência, mas, responsabilidade. Essa responsabilidade perpassa não só por apoio a programas sociais, mas também a garantias de segurança, qualidade, eficiência, … à sociedade. O Código do Consumidor é um exemplo, e uma tentativa de solução, quanto à falta de responsabilidade social das empresas. Vale o mesmo quanto às leis de proteção ao meio ambiente. Pode-se falar em responsabilidade social diante dos últimos acidentes ambientais de mineradoras, envolvendo falta de manutenção nas barragens de rejeitos? Não se trata de acidente, há crime! E existe uma vontade obstinada, sem freios e ponderações, pelo lucro, e, como diz Cioran, “toda vontade muito obstinada é um indício de tragédia”. Vemos, no primeiro mundo, claras situações de boicote a empresas que não atendem a questões de responsabilidade social, mas isso depende da responsabilidade social individual, que já examinamos neste texto. O mais grave é que, neste momento, o Estado vem ainda flexibilizando essa responsabilidade das empresas, inclusive trazendo maior risco ao indivíduo, à população e à sociedade. Fiquem atentos a liberalidades concedidas por agências reguladoras de atividades econômicas (ANP ANEEL, ANATEL, …) e órgãos de fiscalização (IPHAN, IBAMA, …) recentemente! Ao contrário de avançar na garantia de melhoria para a sociedade, ao inverso do mundo, se tem optado por fazer da responsabilidade social um mero slogan publicitário. Mas há uma grande culpa e conivência da própria sociedade brasileira, que ao final pagará caro por isso. Mas se prefere manter um orgulho dissimulado por todos os envolvidos, enquanto “la nave va…”
Autoria: Fernando Sá e Márcia Siqueira
Autores citados: EM Cioram, Luiz Felipe Pondé, Luis Antônio Simas, Anselm Grün, Jesus Cristo, Barão de Montesquieu, Marco Aurélio, Jean-Jacques Rousseau, Silvio Almeida