“Tô fugindo da loucura, olhando pra janela/Não dormi, a pandemia já deixou sequela/…/Quando eu penso nesse vírus…” (Gabriel Pensador)
A década de oitenta trouxe um novo vírus ao mundo e com ele uma doença fatal, para aquela época, denominada AIDS. Hervé Guibert diria “minha vida tinha tomado um rumo diferente, como o envelhecimento me levou a outras doenças, outros impulsos do coração.” Por ser uma doença que atingia inicialmente pessoas, em geral, com uma determinada orientação sexual, ela foi preconceituosamente apelidada por “câncer gay” e “câncer da promiscuidade”, tal qual o vírus (HIV) recebeu também alcunhas como “vírus de Deus” e “vírus de bruços”. Todavia, existia uma verdade maior, que, como costuma sempre acontecer, muitos não queriam ver. A AIDS era, e ainda é, em grande parte, uma doença sexualmente transmissível, o que importa em uma doença potencial a todos, salvo aqueles que viviam, ou vivem, em plena abstinência carnal. Que Deus os perdoe! E o que se viu? Em um determinado momento, a maioria das transmissões se dava em mulheres casadas, entrando na maturidade e com parceiro único (marido). Caíram dois panos, seja o da extensão da doença, seja o da realidade da estrutura social e suas relações. Deixamos de lado as questões envolvendo contágio por meio sanguíneo (transfusões, uso comum de seringas, …). Os casos tristes deixaram de ser os de filmes como Philadelphia, e de livros não ficcionais como os de Hervé Guibert (“Ao amigo que não me Salvou a Vida”) ou de Reinaldo Arenas (“Antes que anoiteça”), sob tônica gay. A visão romântica e doce de Arenas (“A beleza da relação sexual está na espontaneidade da conquista e no segredo em que essa conquista é realizada.”) perdera espaço para o medo. A AIDS tomava o mundo. Na África, se falava de 2 infectados para cada 3 habitantes. Não teve jeito, o vírus forçou a mudança comportamental pelo uso de meios protetivos, que são adotados, ou não, a critério individual, até hoje, com os riscos inerentes. Mas por que falar de AIDS agora? Pois há um imenso paralelo com a COVID-19, ou seja, com a atual pandemia. Pela forma de contágio, não houve igual tratamento preconceituoso (salvo uma visão de grupos de maior risco), mas o medo, os comportamentos excessivos, e mesmo o deboche (gripezinha) se manifestaram. Pobre de quem espirrar, pois é olhado como um infectante potencial! Mas, o que chama mais atenção em termos de analogia é a mudança comportamental que se impõe. Alguns, e não sei a palavra adequada a utilizar para eles, acreditam que um belo dia tudo será como era. Não será! O COVID-19 não sumirá e teremos que conviver com ele. Talvez tenhamos vacinas, medicamentos, …, mas, certamente, teremos uma mudança comportamental na sociedade, que envolve distanciamento físico, redução de aglomerações, uso de máscaras, álcool gel, … Vacinas não imunizam cem por cento da população, não abragem todas as cepas virais existentes, ou por virem, diante da mutação desse ente unicelular sem vida própria (vírus), ainda possuem prazos de garantia imunológica, … Relações sociais sob proteção é a consequência do COVID-19, assim como relações sexuais com proteção foi a consequência do HIV. Em ambos os casos, por questões de decisão individual, e não entrarei na análise de suas motivações, teremos pessoas se protegendo, ou não. Portanto, mais uma vez um vírus, ou seja, um pequeno ser parasita formado por uma cápsula protéica que pode infectar organismos vivos (seres humanos ou animais), traz uma mudança comportamental de aspecto mundial, em um período de 40 anos. Não é possível que não haja aqui uma lição. Qual? Talvez o aprendizado seja de que todo esse planeta importe em um sistema complexo de engrenagens! Tudo tem uma lógica e uma razão, que devam ser preservadas, e que nós humanos estamos, na maioria das vezes, a destruir. Precisamos entender que somos uma das engrenagens e não algo maior ou superior ao resto. Nossa superioridade se mostra ridícula perante os vírus. Mas nós não conseguimos nem ver os de nossa espécie como iguais, que dirá os demais elementos da natureza. Está na hora de aprendermos a viver em harmonia plena. Ou? …
Autoria: Fernando Sá
Autores citados: Gabriel Pensador, Hervé Guibert, Reinaldo Arenas