“Para compreender as pessoas devo tentar escutar o que elas não estão dizendo, o que elas talvez nunca venham a dizer.” (Sir John Enoch Powell)
Tenho uma amiga que adotou um menino há quase 20 anos. Hoje, o jovem tem 23 anos e, faz algum tempo, tenta manter um relacionamento com o pai biológico. Chamemos o jovem de João e o pai de Miguel, apenas para facilitarmos a narrativa. O problema é que Miguel rejeita João por orientação de um pastor da sua igreja, o qual disse que ele devia se afastar do rapaz, considerando que era fruto de uma relação extraconjugal. Assim, João seria a personificação do pecado de Miguel. Por conta dessa rejeição, João já tentou suicídio duas vezes e minha amiga vem equilibrando a situação de forma precária. Sobre que ponto de vista devemos observar a situação? O de João ou o de Miguel? Como bem diz um provérbio chinês: “todos os fatos têm três versões: a minha, a sua e a verdadeira”. E essa é uma constatação bem antiga… Afinal de contas, todos os provérbios chineses são bem antigos! Tal reflexão indica serem as versões uma questão que aflige a sociedade há muito tempo. Dito isso, podemos nos perguntar: o que faz com que a verdade real não seja percebida da mesma forma por todos que estão envolvidos em uma mesma situação? Acho que diversos fatores explicam esse comportamento, mas vou resumi-los a dois, e discorrer sobre ambos. São eles, o Fator 1: nossas experiências, princípios e valores; e o Fator 2: nossa disposição e capacidade para procurar, entender a verdade real e, eventualmente, mudar nossa visão. O primeiro fator tem tudo a ver com a criação que tivemos ao longo de nossa formação, com os exemplos que vivenciamos e com nossas crenças. Vem muito mais da convivência com nossos pais, com nossos parentes e inserção na comunidade do que de um aprendizado externo. Até porque, tal aprendizado se dará nos limites do contexto em que estamos inseridos, sendo difícil, e mesmo raro, exemplos que fujam desta constatação. Teorizando, se necessariamente convivemos em um meio altamente homofóbico, será difícil – mas não impossível – não nos contaminarmos, em algum grau, com este preconceito. E é aí que aparece o Fator 2, como forma de reafirmar ou desmistificar o Fator 1. A quebra de conceitos arraigados, que vêm de nossa formação cultural, e a própria mudança de princípios e valores dependem, primeiro, da nossa capacidade de nos questionarmos: Será que na situação “A” deveríamos ter agido assim? Meu comportamento foi adequado? A crítica que me fizeram pode ter algum fundamento? E é, nesse ponto, que a nossa determinação e capacidade de nos questionarmos pode atuar como elemento catalisador de uma mudança em nossa forma de pensar ou agir. Neste sentido, ajuda muito na identificação destas situações, o exercício da empatia, que é, de forma simplificada, nossa capacidade de nos colocarmos no lugar do outro. Voltando ao exemplo da homofobia, para sabermos se ela é um valor válido, devemos nos colocar no lugar da vítima da discriminação e avaliar como nos sentiríamos nessa situação. A própria dificuldade em realizar este exercício é forte indicador do quanto o Fator 1 está enraizado. E se levarmos estas considerações para o drama vivenciado pela minha amiga, sob qual ponto de vista devemos olhar a situação? Validar a rejeição com base em argumento religioso que rotula João como parte do problema de Miguel, ou entender que o erro de Miguel não pode ser atribuído a João, e que este é a maior vítima do ocorrido, devendo na verdade ser isentado de qualquer responsabilidade? O fato é que a forma como a mesma realidade pode ser percebida de maneiras até opostas por duas pessoas nela envolvidas precisa nos colocar sempre atentos. Mas o reconhecimento deste fato não pode nos desanimar, pois, como disse Platão, “Vivemos no mundo do irreal, onde tudo o que vemos é somente uma sombra imperfeita de uma realidade mais perfeita.”