UM ENSAIO SOBRE O CABELO CRESPO
“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.” (Angela Davis)
Ao traduzir meus sentimentos para o âmbito das palavras tentei pensar na primeira que me vem à mente quando perguntada sobre minha transição capilar. E a que me ocorreu foi, imediatamente, violência. Bizarro, não é? Para entender esse contexto tão arraigado sobre nossos costumes, devemos revisitar um período trágico chamado Escravismo Brasileiro, onde a passagem do negro da condição de propriedade para de um ser humano livre também marca o início do racismo estrutural brasileiro. A segregação racial começa com o fim dessa temporada de dor e sofrimento, e persiste a característica de distinguir um senhor de um escravo alforriado, exclusivamente, pela a cor da pele. A ausência de políticas que amparassem a causa desses escravos alforriados, somada à construção historiográfica concentrada na Família Real Portuguesa e nas expedições culturais europeias, mantiveram escondidos e/ou enfraquecidos os exponenciais da representatividade negra no nosso país. Referências como (i) Besouro, o maior capoeirista nacional, (ii) Cândido da Fonseca Galvão, mais conhecido como Príncipe Obá, um grande articulador político, e (iii) Joaquim Pinto de Oliveira, mais conhecido como Tebas, um dos maiores arquitetos brasileiros do século XVIII, são ocultadas quase criminalmente para que nossos modelos de liderança, motivação e luta não sejam fortalecidos. Dessa maneira, a cor da pele é usada até hoje, inconscientemente, para definir o conceito de “superior” ou “inferior” dentro da luta de classes definida por Karl Marx. Sob ótica brasileira as classes C e D são predominantemente negras. Voltando ao mote desta reflexão, a violência racial começa na infância com o fim da ingenuidade, seja por sua alta incidência de melanina, seu cabelo com baixíssima oleosidade ou seus traços negróides. A brutalidade se dá através de piadas, ofensas, restrições e até mesmo agressões físicas. Quando o primeiro contato social condiciona a sua crença na própria “inferioridade”, a psique pode carregar sequelas permanentes na trajetória de uma pessoa negra, principalmente se for uma mulher. Portanto, o processo de assumir a própria identidade não deveria ser algo tão difícil, justamente por ser direito inerente à própria civilidade. Graças a esse contexto, a transição capilar se torna um processo desafiador de auto-aceitação, onde a realidade de pessoas que não somente expressam o fenótipo da negritude, mas enxergam a necessidade de se posicionar como tais, se torna material para um texto como esse. A partir dos imensuráveis ataques sofridos desde a infância, são dois os caminhos que a psique da mulher negra pode seguir: a auto-subtração em prol de um padrão estético pré-estabelecido e, posteriormente, a auto-superação. A subtração se torna agressiva quando provoca o fenômeno da automutilação. Seja através de alisamentos capilares, procedimentos estéticos que clareiam a pele ou cirurgias plásticas que afinam traços faciais. A automutilação é estimulada pela busca de pertencimento social. Entretanto, no caminho da superação, a redescoberta da própria identidade é libertadora. Aqueles que nunca precisaram negar a si mesmos nunca saberão o significado dessa decisão. Muitos ainda acreditam na irrelevância dos inúmeros influencers que produzem, incansavelmente, conteúdos digitais didáticos e muito interativos sobre a transição capilar. Estes ignoram o fato de que, graças ao trabalho que faz valer o valor da negritude dessa geração, a transição capilar virou pauta permanente no debate acerca do empoderamento racial brasileiro. A importância desse movimento chegou até a economia, com o exemplo de Zica de Assis como empreendedora e inovadora. Mas será que não existe positividade nesse processo? Claro que existe. A diversão está na prática alquimista que envolve os cuidados com o cabelo crespo. Cremes, óleos, gelatinas, géis e muitos outros produtos que compõem o tratamento capilar e que garantem uma terapia ocupacional simples, mas com resultados bastante satisfatórios. Como crianças que brincavam com massinhas de modelar, nós crespas e cacheadas adoramos experimentar receitas diversas com frutas, grãos, plantas e muitas outras alternativas. O resgate da infância espoliada pelo racismo. Estamos apenas no começo. Como citado pelo ativista Martin Luther King, ainda temos um sonho. Vamos enfrentar a estrutura política, social, educacional e propagandista que insistem no estereótipo do negro escravo, serviçal, empregado ou coadjuvante. Haverá o dia em que nós seremos símbolo da beleza, do glamour, da elegância, da etiqueta e, principalmente, da intelectualidade. Obrigada à Djamila Ribeiro, Iza, Tereza de Benguela e tantas outras que não desistiram de si no meio do caminho, e se tornaram nossas maiores referências em beleza, erudição e luta. Obrigada por nos servirem de exemplo. Que nunca sejam ocultadas! Prestemos o máximo de atenção ao infortúnio da criança negra, desde a perda de sua autoestima até na negação das próprias características. Se esperamos um futuro igualitário, devemos conhecer a história da nosso povo sob todas as perspectivas. Cuidemos da nova geração para construir o futuro de uma sociedade mais consciente. Lutemos contra o risco da história única sobre a fala de Chimamanda Adichie: “Ser negra é ser livre, linda, inteligente, competente, forte e cheia de emoção. Ser negra é ser humana. E ainda ter um cabelo estruturadamente lindo na sua harmonia natural.”
Autoria: Juliana Lima
Autores citados: Angela Davis, Chimamanda Adichie, Martin Luther King