Aliança, insatisfação constante?
“E ser livre não é beijar na boca e não ser de ninguém. É ter coragem, ser autêntico e se permitir viver um sentimento…” (Arnaldo Jabor)
Corriqueiramente se fala em relações abertas como um avanço histórico ou social, o que pode ser uma grande falta de percepção histórica e sociológica. Desde a Roma antiga, casamentos, fossem sine manus ou cum manus, tinham por fim realizar alianças de manutenção, obtenção ou alteração de poder político e econômico, o que também se percebia nas denominadas bodas judaicas. Com o advento da Idade Média, o cristianismo elevou os casamentos à condição de sacramento religioso, mas a motivação continuava a mesma, tendo sido acrescido a ele, para garantia de transmissão legitima de poder, o “direito da primeira noite” (virgindade feminina) e o cinto de castidade. Poucos eram os ricos e detentores de poder. Então, poucos casavam! As relações eram, em regra, abertas. Pela falta de sentimentos se estabeleciam alguns códigos de conduta principalmente para mulheres, como se vê no Tratado do Amor Cortes, de André Le Champelain. O vínculo indissolúvel do casamento, salvo pela morte, lembrava a obrigação de cumprir os contratos da “pacta sunt servanda”, também do direito romano e vigente sem excepcionalidade até por volta de 1918. Só a morte dissolvia o casamento, e entende-se porquê várias mulheres foram mortas na inquisição, para que viúvos pudessem desposar outras mulheres por razões diversas (interesse em outra, obtenção de um herdeiro legítimo, …). O casamento era um negócio tão duvidoso que veremos Leonardo da Vinci dizer que “O casamento é como enfiar a mão num saco de serpentes na esperança de apanhar uma enguia.”. A ruptura de tal conceito de indissolubilidade era tão grave, que teremos o surgimento da Igreja Anglicana com Henrique VIII. Os “casamentos por interesse” se mantiveram na história, principalmente em sociedades conservadoras, geralmente agrárias, aristocráticas e oligopólicas. O Brasil é um modelo disso. Quanto aos “casamentos por amor” começam a surgir, efetivamente, após a Revolução Industrial, quando homens e mulheres, indo para as cidades e, enquanto elementos assalariados de produção, adquiriram alguma “liberdade” de expressão e ação. Luc Ferry cita esse momento como o advento da valorização do amor, que transmutará do amor individual (Iluminismo) para o ideológico (Niilismo), modificado agora para o coletivo na forma do Segundo Humanismo. Mas, se falha a justificativa histórica e sociológica, para um momento presente de relações abertas, talvez a filosofia explique melhor isso. Luiz Felipe Pondé, em seu livro “Amor para Corajosos” dá a pista principal, ao falar de uma geração com grande dificuldade de afeiçoar-se e ser objeto de afeição. Hoje, todos acreditam que podem ser felizes o tempo todo, o que é uma bobagem. Isso só acontece no FaceBook. A vida possui momentos felizes e momentos tristes. Talvez mais momentos tristes por força das frustrações oriundas de uma necessidade do homem viver no futuro e no passado, ao invés de viver o presente. Pondé, Karnal e Cortella exploram com propriedade o tema no livro “Felicidade”. Voltando, esse indivíduo frustrado (já que achava que sempre seria feliz, e não o é) também é extremamente individualista (egoísta e egocêntrico), em parte por ser mimado por pais superprotetores, que não permitem que ele enfrente a realidade, afastando-o de responsabilidades e de responsabilização (impunidade, inconsequência, …). Ouve-se a famosa frase: “Quero para os meus filhos o que não tive!”. Os filhos devem ter aquilo que construírem e conquistarem com seus atos e escolhas. Como é mimado, o indivíduo que quer ser feliz o tempo todo, entende que tal felicidade é um dever do mundo para com ele. Ou seja, os outros devem fazê-lo feliz por todo o tempo. Não caberia a ele a busca da felicidade. Um indivíduo que se acha o centro do mundo (mimado), que quer ser feliz o tempo todo (frustrado) e que coloca na conta dos outros sua felicidade, e consequente frustração, não consegue se afeiçoar ou ser objeto de afeto. Suas relações serão superficiais, descompromissadas, facilmente substituíveis, sem consideração e reconhecimento, … Agregue-se, aqui, que, se há ausência de sentimento, tal indivíduo buscará respostas na demanda da sociedade, que hoje envolve: sucesso, competitividade, eficiência, velocidade e mudança. Portanto, por que estabelecer uma relação firme e com sentimento se pode haver “alguém melhor” alcançável? E o melhor passa a ser alguém com mais beleza, mais sucesso, mais grana, … Ou seja, alguém com mais coisas que se perdem ou podem se perder. A essência da existência fica relativizada e a vida boa parece se confundir com a boa vida. Inicia-se o ciclo da constante insatisfação, típica da nossa sociedade. Independente da visão de Thomas Edison (“A insatisfação é a principal motivadora do progresso.”) não se pode viver a insatisfação como a boa vida. ‘- Então, se encontro alguém, continuo a procurar, pois pode haver alguém melhor? Portanto a relação precisa ser aberta!’ Só insatisfação. Muitas vezes, quando se houve falar da dificuldade pessoal com o isolamento social pela pandemia, vê-se que o problema está na efetiva demonstração agora do isolamento pessoal pela falta de afeição do indivíduo ativa e passivamente. Não há uma lição aqui? No momento em que se exige solidariedade, visão coletiva e empatia da humanidade, não é hora de refletir sobre o quanto nossa capacidade de afeição impossibilita tais exigências? O quanto, vivenciar sentimentos nos manteria no presente da nossa vida com entendimento da essência de nossa existência, ao contrário da busca contínua da insatisfação constante? “Os componentes da sociedade não são os seres humanos, mas as relações que existem entre eles.” (Arnold Toynbee). Não se pugna aqui pelo romantismo alemão, onde suicídios se deram após a leitura do livro “Os sofrimentos do jovem Werther” (Wolfgang Goethe), tornando impublicável a obra por um período. Aqui se pergunta sobre nos reorientarmos ao afeto, sem o qual inexiste amor, empatia e solidariedade.
Autoria: Fernando Sá e Leonardo Campos
Autores citados: Arnaldo Jabor, André Le Champelain, Luc Ferry, Leandro Karnal, Luiz Felipe Pondé, Mário Sergio Cortella, Thomas Edison, Arnold Toynbee, Wolfgang Goethe
As matérias são fabulosas.. eu quase que varei a noite lendo p Conteúdo das matérias…
Parabéns
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